AS QUALIDADES INSTINTIVAS DO NEGRO, SOB O PONTO DE VISTA ARTÍSTICO E EMOCIONAL
Sabemos que os pretos têm muito da criança pela candura, pela espontaneidade, que se revela tanto na sua capacidade para admirar e imitar, quanto para desconhecer os verdadeiros perigos, enchendo-se de terror diante dos imaginários. Já tem sido afirmado que o preto, no fundo, representa um tipo dionisíaco, sendo mais emotivo, mais sensual, mais instintivo, mais telúrico. Ele se encontra mais perto das forças cósmicas primordiais e, por isso, também mais afastado das questões intelectuais, das lucubrações dialéticas, do trabalho cerebral mais consciente. Os negros se movem mais pelo sentimento e a emoção, deixam perceber melhor as profundezas do inconsciente, esse inconsciente pré-lógico que tem sido recalcado pelos séculos e sofrido a poderosa influência da civilização, civilização mais intelectual, que tem muito de cerebrina, de artificial, de contrária à verdadeira vida instintiva. Se, levados pela inteligência, atravessamos assim uma barreira, alcançamos outro lado, penetramos noutra região, não há dúvida que sentimos com frequência aquela nostalgia que vem das profundezas da alma e talvez nada mais traduza do que conflitos criados dentro da nossa natureza, conflitos, portanto, estritamente humanos e que podem ser causa de nossa infelicidade, mesmo de algumas das nossas enfermidades.
Não outro senão o célebre racista Gobineau afirmou que a fonte das artes está oculta no sangue dos negros, cujas aptidões podem exceder as do homem branco. “Onde há mais sangue preto, aí, disse ele, brota a poesia lírica, a imaginação desenfreada, a sensação dominante da vida.” Frobenius, sábio alemão, disse que os pretos têm mais humanidade nas suas fábulas, que os seus contos são carne viva, enquanto os nossos, para eles, não passam de ossos sem carne. Por isso, não é de admirar que se identifiquem com qualquer povo até o excedendo no que possa ter de mais profundo e instintivo. Já tem sido chamada a atenção para o fato de Púshkin, de ascendência negra, ser mais russo, traduzir melhor as tendências desse povo do que qualquer outro dos seus escritores. Alexandre Dumas foi caracteristicamente francês, francês no que esse povo tem de mais autenticamente francês. O mesmo aconteceu com Coleridge Taylor, homem de cor, que encontrou na música o que ela apresenta de mais assinaladamente inglês. Gilberto Freyre insistiu em tais aproximações, mostrando que ninguém melhor do que Gonçalves Dias, na sua “Canção do exílio’, soube cantar a saudade da pátria e que a poesia de Jorge de Lima é o verbo que se fez carne, carne mestiça. Ele mostra a tremenda superioridade artística do negro brasileiro, graças à sua ternura, ao seu instinto, à sua bondade, enquanto, do lado do preto norte-americano, é a criação poética e talvez a musical crispada, agressiva, quase uma reação de defesa. Não é certamente por outra razão que quase todas as canções negras de grande sucesso nos Estados Unidos são obra de brancos, como as do admirável Stephen Foster, comparável e comparado a Schubert pela sua extraordinária riqueza melódica, autor de mais de 20 canções entre as 200 mais célebres do país. Como Verlaine e Poe, Foster acabou na bebida, aos 38 anos de idade, na mais extrema miséria. Não foi senão depois de morto que a sua obra se tornou célebre e passou a render milhões, não para ele... O que é preciso ser posto em evidência é que o subconsciente, em última análise, tem mais força e comanda, razão pela qual também o sexo é mais poderoso que as leis e as convenções. A própria reação contra os pretos, tão exagerada e absurda, é prova de que deve basear-se em motivações desse gênero.
Muito interessante, nesse sentido, é o aparecimento da escultura africana em tempos recentes. Os bronzes de Benim, conhecidos desde 1700, são dos mais extraordinários que existem, havendo diversas publicações sobre essa escultura, da qual Picasso, Braque e Vlaminck se tornaram colecionadores. A exposição realizada em Paris em 1919 despertou grande interesse e, em Nova York, encontra-se a Galeria Segy, a única do mundo que se dedica exclusivamente à arte africana. Digno de nota é o fato dessa escultura não ser visual, não copiar a natureza, sim procurar exprimi-la conceitualmente, numa expressão abstrata que a simplifica, distorce, decompõe, como fizeram os cubistas e impressionistas, dos quais representam precursores multisseculares. Também do lado da música, mormente do lado da música, é o seu sentimento extraordinário, principalmente em relação ao ritmo, no qual o negro se tem revelado inexcedível, manifestação que deve estar de acordo com o seu temperamento mais íntimo e as leis mais profundas da natureza. Hoje, começa-se a reconhecer que os pretos estão sendo corrompidos pela civilização, sobretudo pela influência do dólar e do turismo, que têm artificializado todos os elementos da sua arte. O seu ritmo é tão prodigioso, que qualquer observador, mesmo medíocre, pode dar-se conta do seu poder. Eles vibram com os instrumentos quase como se fossem estes partes do seu corpo. Os próprios garçons servem no passo cadenciado da música, executando movimentos rítmicos, não raro até acrobáticos para acompanhar a orquestra. É essencialmente pelo ritmo que eles dominam na música, pelo ritmo que é o componente mais profundo e valioso dessa arte. A harmonia é um elemento mais superficial, menos natural, fácil de se obter pelo estudo e a aprendizagem, fácil também de se sofisticar. A melodia, por sua vez, é mais questão de hábito, de moda, que varia com as convenções. Por outro lado a emoção musical corresponde a qualquer coisa de especial, não pode ser expressa por palavras, possui uma significação própria, podendo-se senti-la e gozá-la sem se pensar em coisa alguma, instintivamente. O ritmo é a força principal da música, o motivo capital do seu sucesso, decorrente certamente de um mecanismo biológico especial, que deve fazer parte da própria substância viva, embora deixe de existir em certos indivíduos. A superioridade do negro nesse particular é espantosa, como tem sido reconhecido por todos que se ocupam da questão, tão espantosa que se tem afirmado não existirem bailarinos negros medíocres.
Estudos sobre o negro, 1958
Antônio da Silva Mello
(1886-1973)
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