ILUMINURAS
NA ESCURIDÃO
O hálito do imóvel. Um vulto rígido
de animal no azul, sua santidade.
Poderoso é o silêncio da pedra…
Georg Trakl
Alfred Leopold Isidor Kubin [1887–1959], em sua longa existência, foi, por imposição do tempo e da realidade tangível, uma das muitas testemunhas dos episódios mais complexos e absurdos de nossa história recente. Vivenciou o horror das guerras e da bomba H, o nascimento e a ascensão do nazismo, o fascismo, o populismo, as ditaduras totalitárias de ideologias de direita ou esquerda, as explorações imundas das colônias europeias na África e Ásia, e tantos outros desastres e disparates.
“Sou o organizador do incerto, do que tememos, da penumbra e do onírico”, diz o artista. E, como um imã a que quase tudo atrai, a obra de Alfred Kubin, essencialmente simbolista – e, portanto, radicalmente humana –, faz transbordar o inimaginável, extraindo do pesadelo, das compulsões, o que há de secreto em nossos medos e sentimentos. Em um texto datado de 1922, Sobre minhas experiências oníricas, Kubin escreve: “A vida é um sonho”.
A cidade de Viena, na virada do século XIX para o século XX, era um catalisador de corpos e almas. Deambulavam por ela Sigmund Freud, Ludwig Wittgenstein, Gustav Klimt, Egon Schiele, Oskar Kokoschka, Stefan Zweig…
As passagens de um século a outro são marcadas por ambiguidade e extrema excitação, pois, ao mesmo tempo que trazem esperança, inquirem de maneira pessimista e melancólica o porvir como um lugar a guardar o medo e a neurose.
Historicamente, a fertilidade artística e as evoluções e processos científicos, quase sempre, precedem momentos de tristeza, erosão espiritual e moral, convulsão e caos.
Meu olhar vaga no tempo. Me aproximo dos flagelos, sofrimentos e atrocidades impostos aos santos românicos. Caminho aos martírios dos apóstolos e às dúvidas dos filósofos de José de Ribera. A violência poética sempre esteve ao lado da arte, é uma arma que nutre o que é negro e primitivo.
Outono em Vargem Grande. Os troncos de lenha crepitam na lareira do ateliê.
Lamento
Sono e morte, as águias sombrias
rondam-me a fronte a noite inteira:
a áurea imagem do homem
engole-a a onda fria
da eternidade. Em recifes medonhos
rompe-se o corpo purpúreo.
E queixa-se a voz escura
sobre o mar.
Irmã de imensa melancolia,
olha: um barco assustado naufraga
sob estrelas,
na face calada da noite
Georg Trakl
Permaneço mudo em face dos delírios das imagens de Alfred Kubin. O Medo, A hora da morte, Não mentirás, O homem atormentado, Saturno, Enfermidade, A hora do sonho, Noite inclemente, Epidemia.
Saio no escuro. Piso o orvalho incerto, iluminado por uma lua quase ausente. O pássaro da manhã não tardará em trazer ordem e claridade ao mundo dos homens.
Gonçalo Ivo
Vargem Grande, 20 de abril de 2021.
*Fragmentos de poemas de Georg Trakl na tradução de Marco Lucchesi, Numen Editora, 1990.
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