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domingo, 24 de outubro de 2010

ALBERTO PUCHEU ( PARTE 2/2)

São corpos... São corpos que, em algum momento, 
esquecidos, anônimos, sobem e descem uma rua, 
nada mais. Subindo ou descendo uma rua, 
atestamos então este hiato de desconhecimento 
entre o corpo abandonado e as diversas vidas 
que o tentam colonizar, entre a vida nua 
e as vestimentas vivas que a recobrem, 
entre a vida crua e o que dela pode ser cozido, 
entre a vida aberta e a vida vivida. Atestamos 
a fenda deste hiato, uns emigrantes da distância 
neste hiato de que não podemos nos afastar, 
uns estrangeiros, uns viajantes, uns forasteiros, 
uns gringos, uns bárbaros neste espaço 
que se serve das palavras para falar 
em uma língua estrangeira, uns índios 
neste espaço, nesta picada, nesta clareira, 
uns berberes e o vão do deserto esgarçando 
os berberes, uns esquimós e o vazio da neve 
ampliando os esquimós, uns pescadores 
dispersos pela luz, tragados por este espaço 
diluído entre a areia e os sóis dos Lençóis, 
o espaço em que o explosivo queima 
entre a genitália e a cueca do nigeriano 
no avião. Atestamos este espaço das palavras 
que se servem das palavras para falar. 
Apátridas, não temos por pátria a língua portuguesa 
nem outra nos seria natural. Nascemos 
sem língua, abertos a qualquer jargão 
que em nós quisesse se desdobrar, nascemos 
sem povo, abertos a qualquer bando 
que em nós quisesse se desdobrar, 
nascemos sem lei, uns bandidos, uns canhotos, 
uns lobisomens, uns burros, uns jumentos, 
umas vacas, umas piranhas, uns veados, 
umas éguas, umas antas, uns porcos, 
umas mulas, umas bestas, umas baleias, 
umas cachorras, uns tubarões, uns animais, 
uns bichos, umas bichas, umas feras, 
uns selvagens, uns fora-da-lei 
abandonados a qualquer lei 
que nos pudesse governar, abandonados 
a qualquer lei que tivéssemos de desregrar. 
Sobreviventes, descendemos de uma classe 
de épocas perigosas praticamente esquecidas, 
exilada da cidade dentro da cidade, 
e, mesmo que ser, estar, saudade, cidade, 
floresta, rio, mar, sertão, natureza 
e outras palavras nos digam intimamente respeito, 
navegamos, apátridas, a abertura, o sem, 
o não, o nem, o a- que não nos largam. 
Por mais que não queiram, trazemos conosco 
os espaços vazios a distorcerem as possibilidades 
que cotidianamente se oferecem 
do que nós somos, do que é a água 
do rio, do mar, da cidade, do país, 
do mundo, e, por mais que não queiram, 
nossa saliva é o suor das palavras não-ditas, 
e, por mais que não queiram, 
misturamos o separado, trazemos conosco 
a cidade e a natureza ferina, a poesia 
do dedo que falta na mão do presidente.

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