Seguidores

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

LUCÍLIA GARCEZ !!!

Da sempre imperdível Lucília Garcez.


LEITURA

Nem sempre a leitura, especialmente a de narrativas, apresentou as características e as funções que tem para o homem contemporâneo. Mitos, lendas, narrativas folclóricas, contos orais populares procuraram em sua essência dar uma interpretação do mundo, mas sua utilização, a maneira como foram conservados e transmitidos assumiu diversas configurações. O historiador Robert Darnton ( in O grande massacre dos gatos), a partir de informações do lingüista e etnológo A.L.Becker, revela que nos ritos mortuários de Bali a leitura de narrativas tem um papel mítico, sagrado, essencial:
“Quando os balineses preparam um cadáver para ser enterrado, lêem histórias uns para os outros, histórias comuns, de coleções de seus contos mais familiares. Lêem sem parar, vinte e quatro horas por dia, durante dois ou três dias sem parar, não porque precisem de distração, mas por causa do perigo do demônio. Os demônios apoderam-se das almas durante o período vulnerável imediatamente após a morte, mas as histórias os mantêm afastados. Como as caixas chinesas ou as sebes labirínticas dos jardins ingleses, as histórias contêm contos dentro de contos, de maneira que se entra por um e vai-se dar em outro, passando de uma trama para a outra cada vez que se vira uma esquina até, afinal, alcançar o núcleo do espaço narrativo que corresponde ao espaço ocupado pelo cadáver dentro do pátio interno da casa. Os demônios não conseguem entrar nesse espaço, porque não sabem dobrar as esquinas Batem as cabeças inutilmente contra o labirinto narrativo que os leitores construíram e, assim, a leitura fornece uma espécie de fortificação, de defesa. Cria uma muralha de palavras (...) que pela imbricação da narrativa e a cacofonia do som, protege as almas.” (Darnton, 1986)
Aqui a narrativa é salvação, como foi salvação também para Sherazade que escapa da morte pelo poder sedutor e encantatório dos contos das Mil e Uma Noites.
De cultura para cultura, de época para época, tanto a função da leitura como a maneira de ler vai se transformando. Na história da humanidade, desde muito antes da invenção da imprensa, desde a antiguidade clássica, os textos literários, passados oralmente de geração a geração ou manuscritos, serviram a diversos fins e foram utilizados de diversos modos. Sobreviveram a incríveis ameaças de apagamento e destruição e, por muitas vezes, tiveram que ser protegidos incansavelmente, mesmo quando já impressos.
Em nossa cultura racional e objetiva lemos para aprender, para nos qualificarmos, para nos informarmos, para saber de onde viemos, para saber quem somos, para escapar da solidão, para conhecer melhor os outros, para saber para onde vamos, para conservar a memória do passado, para esclarecer nosso presente, para aproveitar as experiências anteriores, para não repetir os erros dos nossos ancestrais,para ganhar tempo, para nos evadirmos, para buscar um sentido para a vida, para compreender os fundamentos da nossa civilização, para alimentar nossa curiosidade, para nos distrairmos, para vivenciar emoções alheias ao nosso cotidiano, para nos cultivarmos, para exercer nosso espírito crítico, para usufruir um prazer estético com a linguagem. Enfim, para participarmos de uma corrente de construção e circulação de sentidos e interpretações do mundo pela palavra que atravessa os milênios.
Qualquer que seja a maneira de ler ou o objetivo explícito da leitura, pode-se vislumbrar um vestígio daquela espécie protetora de muralha balinesa de palavras. Muralha de resistência a todas as contingências massacrantes da condição humana: sociais, profissionais, psicológicas, afetivas, ideológicas, culturais. Proteção que nos salva de tudo, até de nós mesmos, pois nos liberta, nos permite a transcendência, a superação das limitações históricas; a descoberta do outro e de nós mesmos, a organização do caos interior. Proteção que delimita um espaço de reflexão e de emancipação do espírito por meio da interpretação simbólica. A leitura é, assim, o espaço de liberdade por excelência, pois lida com o pensamento e o imaginário que são, por natureza, sem fronteiras, sem limites, e proporciona uma forma de felicidade. A leitura é também um espaço de liberdade porque o leitor lê o que quer, quando quer, onde quer, no ritmo que quer.
Entretanto, para usufruir o direito à leitura é necessário passar de forma bem sucedida pelo processo de alfabetização. Estima-se que no Brasil apenas 30% da população adulta tenha desenvolvido todas as habilidades essenciais para ler de forma competente e plena. Os outros 70% estão distribuídos entre os vários graus que vão do analfabetismo total ao analfabetismo funcional. Considerar que um alfabetizado é aquele que lê e escreve um bilhete simples não é mais suficiente para as exigências do mundo contemporâneo. Quem está nesse nível não tem condições de desempenhar as funções mais elementares do mundo do letramento, tais como: ler histórias para os filhos; seguir uma receita culinária; ler jornais e revistas; compreender instruções de segurança ou de uso de equipamentos e produtos; reconhecer informações em rótulos; preencher formulários; entender as informações de contas de luz, água e outras; interpretar tabelas, gráficos, quadros de horários, mapas... Para realizar essas formas de leitura, calcula-se que o indivíduo deva completar pelo menos oito anos de escolaridade.
Analfabetos ou iletrados funcionais são aqueles que alcançaram apenas uma alfabetização imperfeita ou rudimentar, insuficiente para dominar todo o universo simbólico que envolve o letramento pleno e para desempenhar as tarefas que a vida social e profissional exige. O mundo empresarial estabelece, atualmente, um limite mínimo de conclusão do ensino médio na seleção de trabalhadores. E calcula que a cada ano de escola a renda do trabalhador pode crescer 16%. Trabalhadores considerados analfabetos funcionais provocam perda de produtividade e o prejuízo pode chegar a US$6 bilhões/ano no Brasil.
Os inúmeros programas emergenciais de alfabetização em massa já tentados no Brasil não conseguiram sucesso. Na Constituição de 88 propugnava-se o fim do analfabetismo em 10 anos. O atual governo se propõe a alfabetizar vinte milhões de pessoas em quatro anos. Mas a alfabetização que não se completa, que atinge apenas níveis mínimos de decodificação, tende ao retrocesso total. Para que o processo se consolide de forma definitiva e irreversível, é necessário que o alfabetizado se transforme em leitor assíduo. E não se trata da escolha do método “ideal”, pois ele não existe. Trata-se do professor “ideal”: qualificado, autônomo, responsável, interessado, comprometido, decidido a “descobrir” o melhor caminho para aquele aluno e para aquela realidade.
No Brasil, inúmeras iniciativas ao longo das últimas décadas têm procurado chamar a atenção para a importância da democratização real da leitura. As grandes modificações pelas quais passou a sociedade brasileira nos últimos anos exigiram que os programas estímulo à leitura se transformassem. Foi necessário intensificar a atuação, tornando-a mais efetiva, para fazer frente aos apelos imediatos de um mundo cada vez mais seduzido pela imagem, pela comunicação rápida, pela velocidade, e ao mesmo tempo ampliar quantitativamente os esforços para incluir parcelas cada vez maiores da população, não só os segmentos do ensino regular, mas também os adultos. Há exércitos de voluntários anônimos dedicados a essa cruzada.
Nesse percurso, muitas vezes descontínuo e cheio de obstáculos, aprendemos que qualquer iniciativa em direção à consolidação da alfabetização e ao estímulo à leitura deve envolver diversos agentes e diferentes segmentos sociais: famílias, escolas, professores, bibliotecários, especialistas, pesquisadores, editores, autores, meios de comunicação, instituições governamentais e não-governamentais. Se queremos socializar o direito à leitura, como forma de conhecimento, interpretação e compreensão do mundo e do ser humano, é imprescindível uma articulação contínua, intensa e harmoniosa entre esses atores.
Isso porque o incentivo à leitura, já sabemos há muito tempo, depende de:
1) convívio contínuo com histórias, livros e leitores, desde a primeira infância;
2) valorização social da leitura pelo grupo social;
3) disponibilidade de acervo de qualidade e adequado aos interesses, horizontes de desejo e aos diferentes estágios de leitura dos usuários;
4) tempo para ler, sem interrupções, previsto e assegurado no planejamento do programa;
5) espaço físico agradável, confortável, estimulante e atrativo;
6) ambiente de segurança psicológica e de tolerância dos educadores em relação ao percurso individual de superação de dificuldades;
7) oportunidades para expressar, registrar e compartilhar interpretações e emoções vividas nas experiências de leitura;
8) acesso a orientação qualificada sobre por que ler, o que ler, como ler e quando ler.
O processo de formação de leitores autoconfiantes, seguros e competentes deve acontecer na comunidade, no grupo social, na empresa, na escola, na igreja, no partido, em todas as situações possíveis e de forma contínua.
Para aprofundar a reflexão relativa à natureza do ato de ler, é necessário considerar que se trata, simultaneamente, de uma experiência individual única e de uma experiência interpessoal profunda e intensa, um exercício dialógico ímpar, pois entre leitor e texto desencadeia-se um processo discursivo de decifração, interpretação, reflexão e reavaliação de conceitos absolutamente renovados a cada leitura.
Contribuir para a construção de leitores seguros, confiantes, competentes e autônomos é contribuir para a democratização do acesso a um dos instrumentos imprescindíveis para o exercício da cidadania.
Lucília Helena do Carmo Garcez

Nenhum comentário:

Postar um comentário