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quinta-feira, 9 de abril de 2020

Marco Lucchesi



Metamorfoses de Ovídio

A literatura clássica legou ao futuro um de seus melhores paradoxos: a metamorfose e sua tremenda ambiguidade. O fenômeno consiste em assumir o lugar do Outro, sem deixar de ser o Mesmo. Nem Um. Nem Outro. Mas Um e Outro. O Direito e o Avesso. Como Zeus e o Cisne.  O médico e o monstro. O diabo e a dama.  Eis o prodígio: tornar possível o impossível.  A ideia e seu contrário. Isto e Aquilo.

    

A metamorfose é dos fenômenos mais afortunados da Literatura. Confundiu Quixote, com seus moinhos-gigantes. Perturbou Gregor Samsa, homem-inseto. Feriu Apolo, quando abraçou uma Dafne-vegetal. Perdeu Ulysses, no corpo-mundo de Molly. Fez de Fausto uma crisálida, e o marcou de infinito.  Tornou incertas as fronteiras.

    

Mas qual a origem do mistério?  A trama do Universo? A ira de um deus?  O vento imaterial da angústia?

Difícil precisar-lhe uma razão. Todas concorrem, por exemplo, no Asno de ouro,  de Apuleio, com sua estranha e fascinante, plástica e repulsiva metamorfose,  do  jovem que toma as formas de um asno. Depois de muito sofrer, torturas e humilhações, lágrimas e castigos sem precedentes, Ísis sente-se comovida e decide salvá-lo. Num longo ritual, previsto em sonho, ele reassume as formas humanas. O couro áspero agora é pele. As orelhas diminuem. O rabo desaparece. Termina, enfim, a desventura de Lúcio, cuja metamorfose o levou ao conhecimento profundo de si.

Mas houve outras mudanças e nem sempre reversíveis. Ovídio foi quem as soube contar melhor nas Metamorfoses. Boa parte do imaginário Ocidental depende desse livro, como vemos no Inferno de Dante, nos primeiros versos de Boccaccio, no Livro dos seres imaginários, de Borges, sem falar de Italo Calvino, de suas leituras velozes, tomadas cinematográficas e mudanças de plano.

Mais do que um acervo mitológico, as Metamorfoses, de Ovídio, vivem pelo triunfo da Poesia. E trazem com elas o maravilhoso, o resquício do Pensamento Antigo:  o combate da ordem e do caos, do repouso e do movimento, do metro e da desmedida. Discordia semina rerum: a contradição é o motor das coisas.  Primeiro, o Caos, o informe, o ainda-não. E, de repente, de suas entranhas, um Princípio, um Sentido. A forma surge do informe. Os raios, das trevas. Como na Teogonia, de Hesíodo, na física dos pré-socráticos, na Geometria de Platão. A metamorfose seria a memória desse combate. A sombra de Dionísio, em Apolo. A permanência no impermanente. Por isso talvez a leve melancolia nas Metamorfoses...

Ovídio fez inúmeros leitores, pelo mundo e pelos séculos. Não lhe faltaram, desde o Renascimento, traduções memoráveis, na Itália e na França, na Espanha e em Portugal. Ovídio tornou-se escola obrigatória na arte de imitar. Era preciso matricular-se nele para provar-se como poeta. Mas seria sobretudo no século XVIII que as  traduções de Ovídio, junto com as de Lucrécio, deviam adquirir novo papel. Era o início – mais ou menos direto – de certa arqueologia do Iluminismo.  O conhecimento  racional dos mitos. O fundamento da matéria e seus rigores. Tal a razão pela qual eram vertidos os textos clássicos, que evocassem ideias sensistas, ou empiristas. Um  desses emblemas, na Itália, foi o De rerum natura, de Marchetti, a alma Vênus lucreciana, a chuva monótona das partículas e sua ligeira inclinação. Outro emblema, em  Portugal, foram as Metamorfoses, com seu naturalismo algo contrapontístico, diante da História natural, de Buffon, que cristalizara, brilhantemente, todo processo,  todo movimento, toda transformação, para atender ao quadro classificatório de reinos, classes, famílias. As figuras flutuantes de Ovídio estariam mais próximas (para  os leitores de outrora) de A origem das espécies, de Darwin, de 1859. De todo modo, a grande tradução das Metamorfoses deu-se pelo talento do poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, num Portugal pós-Verney, não-jesuíta, menos metafísico e escolástico, buscando no mundo clássico aproximações outras com as ideias que sopravam pela Europa.  

Tradutor de obras diversas, Bocage fez Ovídio falar num límpido decassílabo português. Sua graça e atualidade são desconcertantes. No Ouro de Midas. Na Gruta da Inveja. No abismo de Faetonte.  Os poucos extratos, em que trabalhou o poeta português, foram bastantes para a  tradução ideal do todo. Temos um Bocage, ao mesmo tempo, lírico e matemático. Observador atento da sintaxe latina, e de suas aproximações em português, como deslocamentos à esquerda, mudanças de posição frasal, linguagem alta e fraseado lírico, compensando, com decassílabos diversamente acentuados, a delicada relação do verso latino, arrimado nas sílabas longas e breves. O  texto-origem e o texto-fim parecem realmente congeniais... O tradutor, em momento algum, decide apagar-lhe o rosto. Ovídio – pelas mãos de Bocage – não deixa de lembrar Ovídio.  Donde o mérito da  obra. O ter evitado um dos grandes riscos, de que se deve guardar o tradutor, com seu possível (e não infrequente) menoscabo do texto-origem. Claro que a sua digital jamais desaparece. E, por isso mesmo, não lhe convém melhorar Virgílio ou Shakespeare, para demonstrar, no texto sequestrado, o preço de um patético narcisismo. Reconhecemos o decassílabo de Bocage, na tradução, mas não o encontramos a cada fragmento traduzido, com a desculpa de Ovídio. Nesse campo, a melhor forma de aparecer,  traduzindo, consiste em desaparecer, pois o mérito do coautor (leia-se do tradutor) repousa na  obstinada vigilância do original. De sua fonte. De seu diálogo. O subjetivo é como o rei Midas.  Como o observador na física quântica. Assim, pois, se o sujeito jamais desaparece, não será preciso sublinhar sua visibilidade...

 

Hoje assistimos a estranhas mutações, de frutas e legumes, de células e embriões, a metamorfose possível – fora do debate da bioética e do genoma – é a da  tradução, onde coabitam o Um e o Outro, o Direito e o Avesso, Zeus e o Cisne. Numa palavra: os universais fantásticos, diante de novos e diversos paradigmas, da leitura e da ciência, respondem pelo sorriso do caos.  A tradução é a derradeira metamorfose...    

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