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quarta-feira, 29 de abril de 2020

Oliveira Lima (1867-1928)




PERFIL DE DOM JOÃO VI

Dom João VI não foi o que se pode chamar um grande soberano, de quem seja lícito referir brilhantes proezas militares ou golpes audaciosos de administração: não foi um Frederico II da Prússia nem um Pedro I da Rússia. O que fez, o que conseguiu, e não foi afinal pouco, fê-lo e conseguiu-o, no entanto, pelo exercício combinado de dous predicados que cada um deles denota superioridade: um de caráter, a bondade; o outro de inteligência, o senso prático ou de governo. Foi brando e sagaz, insinuante e precavido, afável e pertinaz.

De sua amablidade contam-se traços de cativar. Quando a Arquiduquesa Leopoldina, após a cerimônia do casamento, chegou a São Cristóvão, que tinha sido preparado para receber os nubentes, encontrou nos seus aposentos particulares o busto do Imperador da Áustria, seu pai, e o Rei fez-lhe entrega, para que lesse e se distraísse, de um livro que, ao abrir e folhear, verificou ela comovida conter os retratos de toda a família ausente. (1)

Para avaliar sua esclarecida equidade, basta referir o que observou o cônsul Henderson: que os ingleses residentes no Rio, quando lhes ocorriam dificuldades sérias com a administração, preferiam muito dirigir-se diretamente ao monarca, sempre disposto a fazer justiça, a entender-se com seus ministros. Frequentes vezes na sua (2) obra, autor britânico elogia a cordura, a benignidade e o liberalismo de Dom João VI, que um escritor dos nossos dias (3) , confundindo a miragem com a perspectiva, intitula com mais espírito do que verdade histórica um “real fantoche”.

Também o ministro americano Sumter dizia gostar incomparavelmente mais de tratar com o Rei, cuja bondade reconhecia e proclamava, do que de tratar com seus conselheiros, sobre quem lançava a culpa de quanto pudesse suceder de mau. “Fala em termos favoráveis do Rei, mas julga péssima a condição da sociedade e altamente desaprova os mil vexames e abusos praticados com o povo em nome do Governo.” (4) Tão longe estava aquele diplomata de considerar o Rei uma nulidade, que nele admitia vontade sincera de cultivar boa inteligência e amizade com os Estados Unidos, reputando-o em tal assunto muito mais adiantado do que os seus cortesãos.

São traços todos esses mais autênticos e fidedignos na sua simpática nobreza de que as anedotas picarescas que valeram a Dom João VI um renome - talvez não usurpado se contido nos limites do desenho e não puxado até a caricatura - de desmazelo bonacheirão e de esperteza saloia, uma auréola barata de bonhomme Richard coroado, uma fama de rei filósofo, que apimentavam suas desventuras conjugais e a que emprestava verossimilhança o seu físico ingrato, homely como bruscamente o qualificou Prior.

Baixo, gordo, sanguíneo, tinha de aristocrático as mãos e pés muito pequenos, mas de vulgar as coxas e pernas muito grossas mesmo em relação à corpulência, e sobretudo um rosto redondo sem majestade nem sequer distinção, no qual avultava o lábio inferior espesso e pendente dos Habsburgos, sem, porém, a maxila protuberante e o queixo pontudo de alguns dos príncipes austríacos, cujos retratos nos foram legados por célebres artistas - que decerto não aninhariam tal propósito maldoso - como exemplares indiscutíveis de degenerescência.

Em Dom João VI as imperfeições de todo ser humano não chegavam para que desmerecessem as sólidas qualidades. Se era tímido, pusilânime mesmo, como tal egoísta, ressentido, ciumento de atenções, amigo de monopolizar as deferências e inimigo de perdoar os agravos menores, também era clemente, misericordioso nas grandes ocasiões quando se fazia apelo direto ao seu coração, arguto em qualquer emergência, raramente ou nunca perdendo o equilíbrio moral, tão generoso para com seus fâmulos e validos quanto econômico consigo, estudioso aferrado dos negócios públicos e governante invariavelmente bem-intencionado. Eram aqueles em suma pequenos defeitos a contrapor a um belo conjunto de virtudes, raro num monarca despótico.

Seu senso político revelou-se em muita ocasião. Um dos mais fracos soberanos da Europa, vimos ter sido o único que escapou às humilhações pessoais por que fez Napoleão passar os representantes do direito divino: os Bourbons da Espanha e da Itália, ludibriados, depostos, vagabundos ou cativos; o Rei da Prússia, expulso dos seus Estados; o César austríaco, compelido a implorar a paz e conceder ao aventureiro corso a mão de sua filha; o próprio Czar, ora tendo que aceitar intimidades em entrevistas memoráveis, ora que rebater a invasão devastando províncias do seu Império.

 

(1) Debret, Voyage Pittoresque, vol. III.

(2) A History of the Brazil.

(3) Paul Groussac, no est. cit. sobre S. Liniers.

(4) Brackenridge, Voyage to South America, performed by order of the American Government in the years 1817 and 1818, in the Frigate Congress, Baltimore, 1819. O Autor ia como secretário dessa missão política ao Rio da Prata, mandada inquirir da situação das Províncias Unidas.

(Dom João VI no Brasil, 1909)

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