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segunda-feira, 8 de maio de 2017

O NOSSO DUALISMO - MONTEIRO LOBATO



O nosso Dualismo

O futurismo apareceu em São Paulo como o fruto da displicência dum rapaz rico e arejado de cérebro: Oswald de Andrade. Turista integral, alternando estadias em Paris com estadias em Ribeirão Preto, leituras de Marinetti e outros com leituras d’“O Democrata”, de Pilão Arcado, visões de mármores de Mestrovich com santos de olho arregalado feitos na Bahia, apachismos elegantes de boulevard com o mumismo urbano de Marianas e Diamantinas — sentiu melhor do que ninguém a nossa cristalização mental e empreendeu combatê-la.
Mas combatê-la como? O velho processo do riso, da sátira, do sarcasmo sempre se revelou inútil entre nós. Dá resultados nos países de cultura disseminada, onde um riso como o de Voltaire se propaga em ondas hilariantes dum extremo do país ao outro. Aqui morre nos lábios de quem o arrepanha, porque a incultura não ondula coisa nenhuma.
Mas Oswald, psicólogo de fartos recursos, teve uma idéia genial: recorrer ao processo da atrapalhação.
— Esta gente, refletiu ele, está a jogar uma partida de xadrez que não tem fim; sempre as mesmas pedras, sempre as mesmas regras, sempre as mesmas saídas de peão do rei; sempre os mesmos xeques de rainha e torre. O riso, a piada de quem lhes sapeia o jogo de nada vale: não ligam, estão absortos demais. O recurso é um só, meter as mãos no tabuleiro e mexer as pedras como quem mexe angu.
E se justificava o angu com teorias metafísicas, transcendentalíssimas, tais teorias não passavam duma peninha (o futurismo), cujo fim era atrapalhar inda mais.
Sabem o caso da peninha?
Um sujeito propôs a outro esta adivinhação: “Qual é o bicho que tem quatro pernas, come ratos, mia, passeia pelos telhados e tem uma peninha na ponta da cauda?”
Está claro que ninguém adivinhou.
— Pois é o gato, explicou ele.
— Gato com peninha na cauda?
— Sim. A peninha está aí só para atrapalhar.
As teorias estéticas dos futuristas são esta peninha...
Assim pensou e assim fez Oswald. E os enxadristas, com grande indignação, tiveram de interromper a partida interminável. Xadrez exige calma, repouso, ordem, regra, sistema, boa educação, e do mexer do angu nascera a desordem, a molecagem, o barulho, a extravagância.
O rei passou para o lugar do peão, a rainha deu de pular como o cavalo, o cavalo a ter movimentos de bispo e no fim de tudo quem levava o xeque-mate era quem saía ganhando.
“A besta de Homero.... A cavalgadura do Shakespeare... O cretinismo do Anatole...”
Inversão, ou melhor, atrapalhação, angu completo dos valores assentes. Dos valores e das regras. A gramática, a boa ordem, a justa medida, a clareza — pilhérias! Por que é que o pronome reflexo não há de abrir períodos? E zás: “Me parece que...” E o “você” expeliu o “tu”, e a velha asneira, que andava no refugo porque só os asnos a manuseavam, foi reabilitada, vestida à moderna e veio à tona de livros e jornais, toda garrida, provando mais uma vez que tudo vai da apresentação, e que um urubu preparado por Vatel pode saber melhor ao paladar do que uma perdiz assada pelas nossas cozinheiras do trivial.
S. Paulo é um meio muito rico de vitaminas mentais e só lá era possível que o gesto de Oswald criasse escola. Assim é que brotou do Bom Retiro, Brás, Bexiga e adjacências uma legião de asseclas. Como sempre acontece, poucos dos legionários compreenderam o alcance da “batalha de Ernani” oswaldina, puro “meio” para a consecussão de um “fim”. E esses bravos guerreiros de 18 anos, e menos, com raríssimas exceções adotaram o meio como fim. Atrapalhar, para Oswald, era o meio de conseguir descristalizar a mentalidade. Só. Mais nada. Ela depois que criasse o que lhe aprouvesse, livremente, sem nenhum dogma, nenhum quadro, nenhuma autoridade que a constrangesse. Não foi outro o objetivo de Oswald, embora ele próprio no calor da luta se iludisse e tentasse construir, esquecido de que as duas funções, a destrutiva e a construtiva, jamais cabem juntas a um mesmo homem. Oswald revelava-se aquele fecundo Nietszche do “Vademecum? Vadetecum!” Queres seguir-me? Segue-te!
Em vez disso a plêiade futurista, coesa no bloco do Quebra-Vidraças, deu de seguir Oswald, atrapalhando também, mas errada. Errava adotando a atrapalhação como fim supremo, objetivo de todas as manifestações artísticas modernas, e não como simples meio, único eficaz numa terra onde o riso de Voltaire, em vez de matar, engorda.
Por instinto, Oswald sempre repeliu os sectários e sempre refugiu de transformar sua colher de mexer, hoje colher de pau-brasil, em paradigma, em maracá sagrado. E passa a vida a criar cismas dentro do grupo, a dividi-lo, a renegar sumos pontífices, a expulsar adesistas — a impedir, enfim, que o chamado futurismo se cristalize em escola e passe a ser fim em vez de simples meio de combate.
Esta brincadeira de crianças inteligentes, que outra coisa não é tal movimento, vai desempenhar uma função séria em nossas letras. Vai forçar-nos a uma atenta revisão de valores e apressar o abandono de duas coisas a que andamos aferrados: o espírito da literatura francesa e a língua portuguesa de Portugal. Valerá por um 89 duplo — ou por um 7 de setembro. Nestas duas datas está exemplificado o modo de falar da escola antiga, francesa, e da nascente nacionalista.
Por que é estranho isto de permanecermos tão franceses pela arte e pensamento e tão portugueses pela língua, nós os escritores, nós os arquitetos da literatura, quando a tarefa do escritor de um determinado país é construir um monumento que reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada nesse país.
Formamos, os escritores, uma elite inteiramente divorciada da terra, pelo gosto literário, pelas idéias e pela língua. Somos um grupo de franceses que escrevemos em português — absolutamente alheios, portanto, a uma terra da América que não pensa em francês, nem fala português.
A eterna queixa dos nossos autores, de que não são lidos, vem disso — dessa anomalia de que não se apercebem. O público não os lê porque não lhes entende nem as idéias, nem a língua. Têm eles que se contentar com um escol muito reduzido de leitores também educados à francesa, os quais em regra preferem ir logo às fontes, aos franceses de lá, aos Anatoles e Verlaines.
Este dualismo de mentalidade e língua tem de cessar um dia. Os gramáticos hão de se convencer afinal de que a língua portuguesa variou entre nós, como acontece todas as vezes que um idioma muda de continente. Como o mesmo latim variou em França dando o francês, em Portugal dando o português, em Espanha dando o espanhol. E que continuará a variar, a distanciar-se mais e mais da língua mãe, até que um dia fique em face dela como está ela hoje em face do latim de Cícero. Seria fato virgem no mundo persistir imutável, apesar da mudança de continente, o instrumento língua — que é eólio e varia até quando muda para um país fronteiriço.
Em casos tais, freqüentes na história, a regra é a língua velha ir ficando cada vez mais confinada entre os eruditos, enquanto a nova se expande no povo. Por fim vence o povo, que é o número e a força. Nos países europeus de base latina o latim resistiu quanto pôde, escorado pelos sábios e eruditos, desprezadores da “corrupção” popular. Dia houve, porém, em que toda a resistência foi inútil e d’alto abaixo a língua se tornou una, pela vitória popular.
Entre nós estamos inda longe de tempo em que o português será língua apenas de um ou outro abencerragem feroz e não lido, mas tudo caminha para isso. O dissídio já está patente. O povo fala brasileiro e os próprios escritores que escrevem em português, não o falam em família. Em casa, de pijama, só se dirigem à esposa, aos filhos e aos criados em língua da terra, brasileiríssima.
Contou-me Bastos Tigre que a Rui Barbosa ouviu dizer de um autor numa livraria:
— Já conheço ele.
E ai de quem não falar assim no trato comezinho da vida! Não só ganha fama de pedante, de “difícel”, como não é bem entendido. Sobretudo ao telefone. Dada a necessidade de extrema clareza, ninguém ao telefone fala em português, se quer evitar complicações.
Bastos quis um dia falar, depressa, depressa, caso urgente, e esqueceu-se de que estava no Brasil.
— Alô! Se o excelentíssimo X está, obséquio, e grande, far-me-á o atendente, chamando-m’o.
Ninguém pescou. Bastos insiste. Nada. Berra. Nada. Por fim manda às favas frei Luiz de Souza e diz:
— O sêo Coisada tá aí? Quedele ele, então? Me chame ele já, sim, meu bem?
O Coisada acode pressuroso e Bastos jura nunca mais falar ao telefone em língua de escrever.
Já temos dois grandes escritores que escrevem na língua da terra, em mangas de camisa, e pensam de chapéu de palha com idéias da terra: Cornélio Pires e Catulo.
A elite franco-portuguesa ilha-os com o mesmo desprezo que tinham os faladores de latim em França e Itália para com os Dantes e Ronsards latinófobos.
Em 1559, um Thomaz Sebillet publicou uma coisa com este titulo: “Défense et Illustration de la Langue Française”, onde havia este pedaço: “Nossa língua não deve ser desprezada, même de ceux auquels elle est propre et naturelle, et qui en rien ne sont moindres que les Grecs et les Romains.”
Entende-se mal e mal o que o homem queria dizer, mas deduz-se que o francês nascente era “desprezado” pela elite latinizante.
O mesmo se dá entre nós. A língua de Cornélio e Catulo só merece sorrisos — e é no entanto a que vai vencer! Já a falamos e acabaremos, cansados de resistir, por escrever como falamos. Só então a literatura será entre nós uma coisa séria, voz da terra articulada e grafada na língua das gentes que a povoam.
A resultante da campanha futurista vai tender para apressar este “processus” de unificação. Mas não o realizará. Não é isso obra de um homem, nem de um grupo. É obra do tempo.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O INIMIGO - MONTEIRO LOBATO



O inimigo

Muito se há dito contra a nossa república, mas para sermos justiceiros é mister não lhe neguemos os benefícios que trouxe. E trouxe-os, incontestavelmente. Há o estado de sítio permanente, há a dilapidação permanente, há o desastre da Central permanente, há o déficit permanente, há a seleção às avessas permanente. São erros, e só os erros dão na vista. Os acertos, esses permanecem ignorados. Gozamo-nos dos seus benefícios, esquecidos de exaltá-los e lançá-los num dos pratos da balança onde se pesam os crimes da república.
Entre esses acertos profundamente benéficos está o modo de proceder republicano em relação ao livro.
Como todo o mundo sabe, o livro é o causador de todas as desgraças que derrancam o homem moderno. Antes que Gutenberg inventasse o meio de pôr o livro ao alcance de toda a gente, a vida do homem no mundo era edênica.
Um rei em cima, uma corte em redor, plebe infinita em baixo e o carrasco de permeio. O rei queria, a corte dizia amém, a plebe executava. O carrasco mantinha a ordem da maneira mais eficiente, cortando a cabeça dos díscolos, enforcando-os ou assando-os vivos.
Mas veio o livro e toda esta bela organização desabou. Os homens deram de instruir-se, descreram do direito divino dos reis e dos sagrados privilégios da corte. O papa deixou de ser o dono das consciências e viu sua fogueira depuradora reduzida a tições extintos. O rei teve que submeter-se a delegações chamadas parlamentos e virou rei de baralho. A plebe folgou. Abriu os olhos e convenceu-se de que também era gente.
Isto foi bom para a plebe, porém péssimo para o papa, para o rei e para os valetes. Tivessem eles adivinhando as conseqüências da humilde invenção de Gutenberg e assá-lo-iam numa boa fogueira com todos os seus tipos de pau antes que a peste da cultura, que vai com os livros, se propagasse pelo mundo. Não se mostraram avisados, não acudiram a tempo e a conseqüência foi o que estamos vendo. O livro multiplicou-se e envenenou a humanidade com “a doença que abre os olhos”.
Aqui no Brasil começou essa doença a disseminar-se, como nefasta gripe, em virtude de termos por 50 anos um chefe de estado que sabia ler e era amigo dos livros. Esse mau homem favoreceu a propaganda da peste e acabou vitimado por ela: a república veio como conseqüência da difusão do livro entre nós.
A república, porém, logo que se pilhou instalada, reconheceu o perigo do livro e tratou de sufocá-lo. Como? Onerando de impostos proibitivos a matéria prima do livro, o papel. Quis assim precaver-se, e mui sabiamente, contra a peste que matara a monarquia e podia também pô-la de catrâmbias. E o vai conseguindo. Há quase 40 anos que a república subsiste talvez graças à sábia taxação que mantém asfixiado o gérmen letal. Eis, pois, uma das benemerências da república que valem por contrapeso dos muitos males que nos trouxe.
Essa abençoada guerra ao livro, inteligentemente surda para que não dê na vista do espírito liberal (que é a desgraça dos povos), intensifica-se de ano para ano com muito bons resultados. Criam-se aumentos progressivos de impostos contra a odiosa matéria prima, além de embaraços alfandegários que acabarão desanimando os seus petroleiros importadores. E neste andar chegaremos ao objetívo visado: tornar o livro só acessível aos ricos, gente comodista que não faz revoluções porque para eles tudo vai pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis. No dia em que o livro for de vez arredado das mãos da plebe, a vitória republicana estará completa. Fica outra vez o rei em cima (tenha o nome que tiver), os valetes e damas em torno e a plebe em baixo, cavando a terra de sol a sol, sem caraminholas na cabeça, sem pensar em seus irrisórios direitos, reivindicações e outras bobagens.
No momento atual o papel para livro paga de direitos o “dobro do custo”. Já é alguma coisa, pois que já afasta o livro de três partes da população. A experiência, porém, demonstra que se um quarto do país ainda pode ler, continua o perigo. Cumpre ao Estado elevar o imposto ao triplo, e mesmo ao quíntuplo, se a triplicagem for insuficiente. Com um pouco mais de boa vontade lá chegaremos, para felicidade nossa.
Outra medida profilática muito sábia que o governo republicano tomou contra o livro foi a instituição dum protecionismo às avessas, de modo que a “indústria editora nacional não possa concorrer com a portuguesa”. Livro e papel impresso. Se o papel vem de fora em branco para ser impresso aqui paga, como dissemos, o “dobro do custo”; mas se já vem feito da Metrópole goza de “absoluta isenção de direitos”. Este protecionismo, instituído por D. Maria I quando mandou destruir os prelos do Brasil colônia, foi restaurado pelo governo republicano sob o hábil disfarce de favorecer o intercâmbio com a Metrópole, intercâmbio, está claro, que não existe nem pode existir.
Foi um golpe de mestre. A concorrência tornou-se impossível, porque não há concorrência possível quando o protecionismo intervém a favor de uma das partes.
Mas, dirão, tudo é livro, venha da Metrópole ou seja feito aqui na colônia. Logo a república não é de todo infensa ao livro.
Sim, mas os livros que nos vêm da Metrópole são livros estrangeiros, que não estudam as nossas coisas, que não gritam, que não petrolizam, que não esperneiam. Inócuos, portanto. Dum róseo cosmético de Júlio Dantas virá uma dose maior de gravatas ao caixeirinho da esquina — idéia nenhuma; mas dum livro indígena de Oliveira Viana ou José Oiticica podem vir idéias e isso, é o diabo.
Alta sabedoria, portanto, demonstra a colônia em manter a avisada lei de D. Maria I. Dos males o menor. Cosmético perfumado, sim. Idéias, nunca. É de cedo que se torcem os pepinos. Se a França tivesse queimado vivos os Elzevires e outros difundidos da peste gráfica, não andariam hoje as estantes cheias desse nefasto Anatole France, que sorri de Jeová, dos reis e dos valetes. País novo que somos é mister que tudo se faça para que jamais prolifere aqui a raça maldita dos que duvidam. E o meio é esse: taxar inda mais o livro, favorecer inda mais o protecionismo à indústria editora da Metrópole contra a sua rival da colônia.
Diz Antônio Torres que em Minas o povo inda não está convencido de que D. Maria I morreu. Supõe-na ainda no trono, velhinha, mas tesa.
Minas pensa muito bem, e a nossa felicidade está em sermos por ela governados.
Amém.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

HERÓI NACIONAL - MONTEIRO LOBATO


PORTINARI

Herói Nacional

É uma grande lição para os escritores o fato de só sobreviverem os livros vividos. E são raros, porque os homens que vivem não têm tempo de escrever e os que escrevem profissionalmente não vivem. Poderá chamar-se vida ao marasmo do escritor sempre metido entre quatro paredes, a ler o que os outros escreveram e sem ânimo, ou sem jeito, ou sem oportunidade, ou sem temperamento de viver a crueza e a violência da vida? Eles apenas imaginam a vida, e na pintura duma floresta ou dum tipo não conseguem esconder a imitação inconsciente que em sua arte substitui a criação.
Daniel de Foe escreveu centenas de livros. Um só nasceu vivo, e vive ainda hoje, e viverá sempre, Robinson Crusoé, porque foi tomado da boca de um marujo que realmente naufragara e vivera sozinho numa ilha deserta.
Prevost também os escreveu às dúzias, mas só a história de Manon Lescaut vive e viverá eternamente, porque só nela a vida estua e palpita como um coração ofegante.
O valor de Kipling, de Conrad, de Jack London está na intensidade e na variedade de vida que esses homens viveram.
Não há em seus livros cena ou paisagem descrita que não ressalte como coisa vista e vivida.
E no caso dos livros vividos pouco importa que os autores tenham sido escritores; a vida interessa tanto à humanidade que ela tudo perdoa a uma obra vivida. Venha sem forma, venha bárbara, grosseira, incompleta, ao avesso de todos os cânones da arte. Se é obra de vida, viverá.
Isto sucedeu ao livro de Hans Staden, publicado há 369 anos em Marpurgo, livro onde relata aos povos atônitos o seu cativeiro entre os canibais de um país recém descoberto à curiosidade européia, o Brasil. As façanhas dos truculentos Tupinambás, sua avidez pela carne humana, seus usos e costumes, tudo interessava grandemente pela novidade — e como a narrativa era feita ao vivo a obra teve grande público e veio pelo tempo a fora, a propagar-se em traduções e edições sucessivas.
Hoje, quase quatro séculos depois, o livro interessa da mesma maneira, não já ao curioso de novidades, mas ao curioso do passado. Os tupinambás passaram; o invasor luso, que começava a chegar no tempo de Staden, ganhou a partida e destruiu esse ramo da raça vermelha. Já não existem nem as ossadas dos heróicos aborígenes que defenderam palmo a palmo a terra natal, como hoje os rifenhos defendem a sua. Tudo passou. Só não passa o livro de Staden, que fixou um momento da vida daqueles heróicos selvícolas que morreram, mas não se dobraram ao jugo dos roubadores da sua terra. E é nesse livro, o primeiro publicado sobre nosso país, que hoje vamos buscar a emoção preciosa do contato inicial com a terra virgem.
O curioso é que tal livro não interessa a nós apenas. Se aqui as edições se sucedem e a obra dia a dia mais se vulgariza, começando já a penetrar nas escolas, no velho mundo se dá outro tanto. A estudiosa Alemanha, que mesmo ferida a fundo pelo maior dos desastres não abandona o pendor pela cultura que há de fazê-la vitoriosa amanhã, não perde de vista o compatriota rude que há quase quatro séculos veio naufragar em nossas plagas, e entre nossos índios nus nu viveu oito meses de mortal agonia.
Dirigida pelo Dr. Richard N. Wagner, de Frankfurt, acaba de sair uma nova e primorosa edição da obra de Staden, reproduzida fotograficamente da primeira edição de Marpurgo, dada em 1556.
Se para a Alemanha Staden inda é reeditável quase quatrocentos anos depois da sua tragédia, que não é ele para nós, cuja terra e gente em seus primórdios só em suas palavras se retratam com “a vivacidade da vida?”
Em Staden desenha-se o tipo de Cunhambebe, terrível antropófago e implacável inimigo do invasor, dos quais comia com avidez quantos encontrasse, apesar da má qualidade da carne.
Comia-os por vingança, com o prazer com que um rifenho ou um sírio deveria comer um francês. Há de ser uma delícia trincar o coração dum roubador que nos vem tirar tudo, a terra e a vida.
Cunhambebe foi um guerreiro notável. Suas arremetidas contra os lusos jamais falharam e, embora o regime de cacicado não permitisse entre nossos índios o surto de um chefe supremo, correspondente ao rei europeu, ele caminhava para isso em virtude do sucesso crescente das suas armas.
Já era obedecido pelos morubixabas seus iguais e acabaria impondo-se a todos e dirigindo-os, se não tombasse em plena mocidade, vítima duma razia da varíola.
Os nossos poetas não souberam ver nele o que ele realmente é: o herói nacional, o Vercingetorix brasílio, o Cid vermelho, o Arminio que de dentro das florestas investia contra os lusos e os desbaratava.
Faltou a Cunhambebe um pouco mais de vida; aliara-se aos franceses de Villegaignon, receberia deles conhecimentos táticos indispensáveis para contrabater a tática do invasor, e como possuía a seu mando gente guerreira da mais decidida é provável que, se não o vencesse a varíola, vencesse ele aos conquistadores, mudando assim os destinos da nossa terra e raça.
O melhor retrato de Cunhambebe quem no-lo dá é Staden, na anotação da entrevista que com ele teve. O grande cacique perguntou-lhe que idéia faziam os “peros” da sua atividade.
— Falam muito de ti e das guerras que lhes moves, e por isso erguem um forte na Bertioga.
— Hei de caçá-los a todos, como caçamos a ti no mato, disse com arrogância o indio.
Não pôde realizar a façanha, vencido que foi pelas bexigas; mas deixou um nome que infundia terror e que vive e viverá sempre graças ao livro de Staden.
A Arminio, o destroçador das legiões de Varo, venceu a traição dos seus pares.
A Cunhambebe venceu a fatalidade. Mas não vemos em que não mereça Cunhambebe ir para a plana dos Arminios. Ambos consagraram-se a um ideal supremo: a defesa da terra natal.
E acresce que ao nosso herói cabe mais uma credencial a favor: comia e digeria os inimigos para que nem a terra se contaminasse com os seus cadáveres...

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O PRIMEIRO LIVRO SOBRE O BRASIL- MONTEIRO LOBATO

PORTINARI


O primeiro livro sobre o Brasil

Em Frankfort — sobre-o-Meno apareceu em 1556 um livro de chamar atenção. As terras da América, recém-emergidas do limbo, tinham o dom de espertar nos europeus funda curiosidade e aquele “vient-de-paraitre” versava sobre as aventuras de um náufrago alemão que dera à costa no Brasil, estivera longos meses cativo dos tupinambás e conseguira por fim fugir-lhes à sanha canibalesca. Assunto palpitante, pois, como se diz em jornalística moderna, e impressão pública muito irmã da que nos deram há pouco tempo as ressurreições faraônicas de Lord Carnavon.
Hans Staden havia apalpado, cheirado, provado a misteriosa terra dos ameríndios, vermelhos homens sem tanga, amicíssimos de trincar a carne dos seus semelhantes como o fazemos ainda hoje ao nosso irmão porco, ao nosso paciente companheiro de trabalho o boi. Seu livro suava realismo; tudo nele, coisa vista e vivida, laivada do inimitável sabor da impressão direta.
Hans seria de poucas letras. Dai o fazer estilizar o livro por um notável da época, o doutor Zychman, médico de Marpurgo, o qual o narigou de um prefácio que é um modelo de literatura encruada.
Em matéria de graças literárias a Alemanha do século XV vagia. Plena fervura da Reforma, o debate religioso em latim sufoca o renascimento esboçado pelo humanismo. Há Erasmo, cujo ovo, no dizer do tempo, Martinho Lutero chocara; essa figura primaz, entretanto, não se atreveu a escrever o “Elogio” no alemão bárbaro do povo. E fora Erasmo os nomes da época são menos nomes que pequenos marcos cronológicos do estado fetal de uma literatura cujas formosas qualidades, mais tarde apuradas ao requinte em Goethe, mal se denunciavam. O livro de Staden, apesar de revisto por um mestre, dá bem a medida e o tom da “rudis indigestaque mole”. Tal é, porém, a força da obra vivida que inda assim vale por uma das coisas mais curiosas e empolgantes que já se escreveram.
Para nós seu valor requinta-se não só por ser o primeiro aparecido sobre nossa terra, como o que melhor nos mostra a arte com que os Vateis tupinambás, nossos avós em linha aborígine, abatiam, esfolavam, arrolhavam, assavam e degustavam entre goles de Cauim White Label os retacos e maciços portugueses, nossos avós em linha européia.
A carne lusa era positivamente um acepipe de lamber os beiços. Provam-no o caso da velha índia catequizada por Anchieta, a manifestar antes de morrer seu último desejo: esbrugar entre os tocos dos dentes uma munheca de criança moqueada; e a abalisadíssima opinião de Cunhambebe, que adiante mencionaremos. Pena é que a “sensiblerie” moderna (medo às baratas) não permita que a par da ressurreição do estilo colonial, ardorosamente preconizado por José Mariano, não se restaure a praxe gastronômica dos nossos maiores — no caso de não haver perdido suas qualidades de paladar o petisco em questão.
Staden viu-se possuído da febre aventureira, a gripe do século dos descobrimentos. Seduzido pelas lendas em giro na boca do povo, relativas aos maravilhosos países das Índias, deixou muito moço a casa paterna, em Homberg, e se foi para Lisboa, entreposto marítimo no apogeu, donde o largar de navios para as terras novas era constante.
Lá engajou-se de artilheiro a bordo da frota que encontrou a sair, realizando assim, em 1548, sua primeira viagem até Pernambuco, ida e volta. Gostou. Passou à Espanha e em Cadiz engajou-se de novo, agora em nau castelhana, tomado de curiosidade pelo Rio da Prata.
Desta feita os fados não lhe correram de feição: naufragou nos costas de S. Vicente, após horrível temporal que ele descreve de modo impressionante. Em terra caminhou ao acaso e foi dar com os ossos em Itanhaém, incipiente núcleo lusitano, cujos moradores o receberam de braços abertos.
Itanhaém e S. Vicente estavam em zona de índios tupiniquins, amigos e aliados dos portugueses; milhas adiante começava a zona dos tupinambás, nação inimiga e antropófaga. Vivia-se em guerra aberta e as constantes incursões dos tupinambás tiravam o sono aos portugueses. Dai a idéia de erigir-se um fortim na Bertioga, à entrada do canal por onde as canoas inimigas costumavam descer para o ataque.
Construiu-se o fortim (ainda hoje lá se vê, muito bem conservado, o forte com seteiras que o substituiu), mas como não houvesse artilheiro à mão ficou algum tempo ao léu, como inútil espantalho.
Foi, pois, com grande alegria que os vicentinas viram cair das asas de uma tempestade aquele artilheiro providencial.
Contrataram-no para tomar conta do forte, por quatro meses, enquanto não vinha do reino o oficial pedido. Ia a findar o prazo quando chegou o coronel Tomé de Souza; instruído dos serviços de Hans, louvou-lh’os e induziu-o a reformar o contrato por mais dois anos, findos os quais o recambiaria à Europa com rendosa carta de recomendação a el-rei.
A gula dos tupinambás atrapalhou o conchavo. Certo dia em que Hans, à espera de hóspedes, saíra em caça de jacus para o almoço, aconteceu estar nas florestas circunvizinhas um bando de tupinambás, de tocaia a bípedes implumes. Agarraram-no de surpresa, amassaram-no a pancada, impuseram-lhe incontinênti a indumentária da terra, nudez absoluta e, bem amarrado com fortes muçuranas, conduziram-no para o fundo de uma canoa. E assim, incomodamente, de papo acima, foi o dolicocéfalo louro transportado à taba de Ubatuba, na qual residiam os dois índios que primeiro lhe puseram as unhas: Alkindar-miri e Nhaepepô-açu, panela pequena e panela grande. Eram seus donos por direito de guerra. Quanto ao destino que Hans teria, estava esclarecido: panela.
A entrada de Hans na taba não merece com propriedade o qualificativo de triunfal, que lhe daria quem de longe se iludisse com o delírio de aplausos do mulherio. Foi antes tragicamente humorística, pois o forçaram a entrar gritando em língua da terra:
— Eis a vossa comida que vem chegando!
Em certos freges do Rio há o menu cantado. Naquele bom tempo cantava o prato...
As mulheres receberam o aviso com grande alarida, como se diz à acadêmica. Tomaram-no das mãos dos guerreiros e se foram com ele por diante aos safanões e bofetadas, dando perfeita imagem de um cardume nu de sufragistas inglesas rebuçadas de chocolate. Lambiam os beiços (hoje mimosos lábios de carmim Doré em suas netas) e escolhiam pedaços com a máxima desenvoltura de gula: O braço é meu — Para mim o coração — Quero esta nádega...
Introduzido que foi na taba o petisco em pé, os guerreiros se foram guardar as armas e ingerir cauim, ficando Hans entregue às suaves carícias do belo sexo. Puseram-no em uma rede, rodearam-no e, como gatas em círculo centrado pelo camondongo, por largo tempo judiaram com ele, justificando-se:
— “Che anama pipike aé” — vamos nos vingar de ti do mal que os teus nos fizeram.
Hans suou a coleção inteira dos suores frios e tratou de encomendar a alma a Deus. Salvá-la, já que do corpo não salvaria nem um osso. Estava nisso quando Alkindar e Nhaepepô vieram ter à cabana a fim de participar-lhe que o haviam traspassado, a título gratuito, a um tio, Ipirú-guaçu, homem vaidoso que ardia por encompridar o nome.
Davam-se os índios ao luxo de periódicas ampliações onomásticas, operação que exigia a captura e o devoramento de um inimigo. Digerida a carne, ficava o nome da vítima aposto como sobrenome ao nome do algoz.
Dada que foi a agradável nova, os ex-donos de Hans o deixaram outra vez entregues às Evas.
— “Poracé!” “Poracé!” ganiram elas, e levaram-no para o terreiro, puxado pelas cordas maniatadoras.
Hans desconhecia essa palavra e pensou lá com a sua barba a fazer vezes de botões que seria o fim. Resignou-se ao trespasse, revirou os olhos para o céu; depois circunvagou-os pelo terreiro, a ver se via a iverapema, pau de matar todo enfeitado, hoje, por evolução, cadeira elétrica nos Estados Unidos.
Não viu iverapema nenhuma. Viu aproximar-se madame Ipirú-guaçu com uma gilete apavorante: enorme lasca de cristal embutida em cabo recurvo. Seria que, antecipando a civilização dos seus netos sulinos, aquela tribo já substituira a morte a tacape pela degola? Nada disso. Vinham apenas fazer-lhe a toalete. Depilá-lo! A fígara pôs-lhe abaixo as sobrancelhas, as pestanas e atacou a barba.
Aqui a vaidade masculina do cliente reagiu. Hans relutou, esperneou, e pediu que o matassem com barba e tudo.
Riram-se as mulheres, declarando que não iam matá-lo tão cedo. Primeiro engordá-lo...
Salvou-se nesse dia a barba de Hans, única peça de vestuário que lhe restava sobre o corpo. Por pouco tempo, todavia. Logo depois apareceu na taba um presente de francês: tesoura. Os filhos de França já preparavam o país para futuro escoamento da sua indústria da toalete. Nada havia na taba que cortar, nem folhas de parra. Como, porém, fosse indispensável ajuizar da boa marca da tesoura, lembraram-se de fazer experiência na barba de Hans.
Desde esse dia a conformidade do prisioneiro com o “dernier cri” de Ubatuba foi perfeita: nu sem pêlos.
A repentina adoção da moda tupinambá por parte de um europeu de terra fria, afeito a pesadas roupas de lã, não podia correr sem conseqüências nevrálgicas.
E não correu. Veio agravar a indizível aflição do aflito a mais formidanda dor de dentes que o século XV registra.
Hans chorou por uma aspirina. O remédio, entretanto, era curti-la até que Tupã desse o basta. E Hans entrou a curtir a dor cruel, rejeitando sistematicamente todos os alimentos que lhe traziam.
Tal jejum não fez conta aos índios; viria emagrecer a presa na mais imprópria das ocasiões.
Apareceu-lhe, então, um índio truculento, de formidável tenaz de guatambu em punho. Era o dentista da tribo. Hans fremiu de horror e fazendo cara alegre declarou que a dor passara subitamente. Mesmo assim o bugre insistiu em arrancar-lhe os dentes, talvez com a generosa intenção de prevenir futuras recaídas. Hans lutou pelos dentes como lutara pela barba — e venceu. O dentista guardou o boticão, depois de adverti-lo de que a teima em não comer era péssima política, pois induziria Ipirú a matá-lo quanto antes. Condição de vida: engordar — e o pobre Hans, embora estalando nas crispacões da sua nevralgia histórica, entrou a comer como um frade.
Residia na taba de Ariariba o grande chefe Cunhambebe, terror de tupiniquins e peros (os índios chamavam assim aos portugueses). Além de guerreiro astuto, hábil em dirigir expedições bem sucedidas, Cunhambebe apreciava singularmente a carne lusa. “Gourmand” famoso, talvez “gourmet” de requintes, é pena que os nossos restaurantes não lhe lembrem o lindo nome em um bife. Merece positivamente essa homenagem, merece-a talvez mais que o Ararigboia, que tem herma em Niterói.
Cunhambebe quis “de visu” ajuizar daquela rica “entrée” loura com que iam regalar-se os ubatubanos, e mandou que a trouxessem à sua presença.
Hans é trazido. Encontra o pantagruélico morubixaba a beber cauim numa roda de companheiros. Reconhece-o logo pelo aspecto e pela insígnia: colar de conchas brancas enrolado seis braças ao pescoço.
Conversam. Hans aproveita o lance para protestar pela milésima vez que não era pero, e sim ótimo francês. Sabia que se pudesse impingir aos selvagens essa dupla mentira estaria salvo. Argumentou, alegou o louro dos cabelos e o azul dos olhos.
O morubixaba sorriu diabolicamente e disse:
— Já comi cinco portugueses e todos mentiram.
O aborígene não acreditava na palavra do branco, de tantas petas vinha sendo vítima desde o fatal 1500. Além disso nunca houve pero que diante da iverapema não alegasse francesia. O cético morubixaba, porém, só se rendia à opinião do seu paladar apuradíssimo. Depois, de bem assado o prisioneiro, ao trincar-lhe o pernil é que decidia entre estalos de língua:
— Francês nada. É português dos legítimos.
O alemão consternado viu que teria de passar por essa prova, a única que o não interessava...
Duas vezes esteve Hans com esse chefe. Da segunda encontrou-o sentado junto a enorme cesta de carne humana comendo gulosamente uma perna. Hans exprobrou-lhe a gula, dizendo que nem os animais inferiores comiam seus semelhantes.
Cunhambebe podia, com base em autoridades antropológicas e ainda mais na futura ação dos europeus relativa aos selvagens da América e África, alegar. que o branco era dissemelhante.
Não o fez. Contentou-se com responder tupinambamente:
— “Jauchara iche”! — Sou um tigre! Está gostoso!... e esfregou na cara do alemão aquela “delicatessen”.
A habilidade, os prodígios de astúcia que Hans Staden empregou a fim de provar que nunca fora pero, e ainda para convencer os índios de que o seu Deus o protegia e era mais poderoso que os maracás de cabaça, deram resultado. Os selvagens foram-lhe protelando o sacrifício e acabaram convictos de que, de fato, não era português. Orçou por oito meses o — é não é — e veio daí sua salvação. Durante esse tempo residiu em várias tabas, trabalhou com os índios, acompanhou-os em expedições guerreiras e prestou-lhes uma assistência médica talvez melhor que a dos pajés.
Sempre que adoecia algum e era procurado, apontava logo a causa da doença: uso de carne humana. Queria assim salvar a sua, criando a desconfiança em relação à petisqueira.
Certa vez foi chamado à cabana de um morubixaba queixoso de peso no estômago. Hans apalpou-o e disse logo:
— É o raio da carne humana. Aposto que você a comeu! É um veneno...
O doente deu balanço nos seus menus e respondeu:
— Comi há meses um português inteiro e noto que desde essa ocasião é que sinto o tal peso, a tal bola no estômago.
— Pois é isso! Mais indigesto, nem pepino cru.
O doente concordou e prometeu abster-se.
Este fato prova que a digestibilidade dos nossos avós não era uniforme. Talvez variasse com a província natal do acepipe, mais na Beira, menos no Minho. A não ser que prove apenas diferença de potencialidade entre estômagos. A moela de Cunhambebe suportava cinco e pedia mais. O outro morubixaba entupia com um.
Já as índias nunca se queixavam de encruamentos estomacais. Cabia-lhes as partes internas, mais tenras e de mais fácil digestão, fosse qual fosse a nacionalidade da rês. Tinham o hábito de ferver a barrigada em grandes vasilhas até que tudo se desfizesse em caldo grosso e muito apreciado, ao qual davam o nome de mingau. Esta “purée” destinava-se às crianças e convalescentes, nunca fazendo mal a ninguém, em que pese à suspeitíssima propaganda de Staden. No preparo deste mingau há um detalhe que não pode ser contado aqui. O batoque. O batoque preventivo... O batoque que impedia que algo se perdesse...
A culinária francesa, ao inventar a “bécassine” assada com as tripas cheias, ao natural, não inventou coisa nenhuma.
Ao cabo de oito meses de cativeiro, depois de mil incidentes e várias decepções mortais, conseguiu Staden embarcar no “Bel’Eté”, navio francês ancorado em Iteron (Niterói). Foi levado a bordo pelos índios de Itaquaquecetuba, em cuja taba passara a residir e de cujos índios se fizera amigo. A despedida foi cordialíssima. Na hora do abraço derradeiro Hans prometeu voltar com um navio carregado de presentes, facas, machados, espelhos, vindo passar o resto dos seus dias no amável convívio de Abati-poçanga, chefe de Itaquaquecetuba.
Bom europeu que era, mentiu mais uma vez. Não voltou coisa nenhuma. A posteridade, entretanto, o absolve da feia falta por amor ao presente que ele lhe fez das suas memórias — precioso espelho da nossa ascendência, que nós, menos por pudor que desleixo, só trezentos e tantos anos depois de dado a público em Frankfort vimos a conhecer em tradução recém-publicada.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

MONTEIRO LOBATO EM 1933 - NOVO GULLIVER

Novo Gulliver

Há lembranças da meninice que jamais se apagam do cérebro adulto, mesmo quando esse receptador de impressões não consegue, por fraqueza senil, reter as da véspera. Lembro-me de um cromo de vivas cores, visto aos cinco anos, reclame da linha de coser Coat’s e não me lembro dos desenhos alegóricos a Cristo publicados nos jornais na última sexta-feira santa. Representava esse cromo um gigante estirado à borda do mar e enleado de mil fios de linha Coat’s; em redor formigava a legião dos pigmeus amarradores. De mãos à cintura, muito contentezinhos, confundiam a imobilidade do gigante, conseqüência do bom sono que dormia, com a imobilidade da mosca enleada por mil voltas da teia de aranha.

Mais tarde, quando chegou o belo tempo dos livros de Grimn, Andersen, Ségur e outros maravilhadores da imaginação infantil travei conhecimento com Jonathan Swift e tive a explicação do meu cromo de Coat. Representava Gulliver no país de Lilipute, amarrado durante o sono de mil cordas liliputianas. Mas Gulliver acordou, estirou os músculos e com um simples espreguiçamento rompeu, com grande assombro dos locais, toda a amarrilhoca que o prendia.

Quem trepa a um Corcovado imaginário e de lá procura ver em conjunto o Brasil, espanta-se da sua atitude. É um gigante deitado e amarrado. Mas não dorme; ofega com a respiração opressa e faz descoordenados movimentos convulsivos para romper o cordame enleador.

O Gulliver sul-americano principiou a ser amarrado pelos portugueses, quando Portugal descobriu que em suas veias circulava ouro, o sangue amarelo; e desd’aí até hoje os homens do cipó, vulgo homens de governo, outra coisa não fizeram, federal, estadual, municipalmente, senão dobrar cipós, cordas e fios de arame sobre seus membros para que, a salvo de pontapés, possam sugá-lo com as suas trombinhas de percevejo.

Portugal só organizou uma coisa no Brasil-colônia: o Fisco, isto é, o sistema de cordas que amarram para que a tromba percevejante sugue sem embaraços. Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro diante do maquiávelico engenho luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro, de dez; cordas de cânhamo, de crina, de tucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e cordas de enforcar.

E assim foi até que um português de gênio impulsivo se condoeu da triste sorte do gigante e cortou o cordão umbilical que o prendia à Metrópole, corda mestra, corda mãe de toda a linda coleção de cordas fiscais secundárias. E o gigante respirou e viveu feliz, sobretudo no meio século de “compreensão” que o magnânimo filho do primeiro Pedro houve por bem outorgar-lhe.

Mas não há felicidade que dure mais de meio século. Uns bacharéis formados pela universidade da Lua e uns generais tentados pela serpente da traição implicaram-se com a velhice do príncipe magnânimo, acusaram-no de saber quatorze línguas, de assistir a exames de meninos, de boicotar com um célebre lápis azul os maus juízes, em vez de fazer as coisas interessantes que, quatrienalmente postos no lugar do velho sábio, eles, bacharéis e generais, fariam. E deportaram-no; meteram-no a bordo dum mau navio e:

— Vai ninar os netos de Victor Hugo. Tu não entendes de lidar com o gigante.

O bom velho partiu e os bacharéis e generais, a olharem-se uns para outros, sorridentes e gozosos, tomaram conta da casa.

Não diremos aqui das conseqüências inúmeras da mudança; basta que as sintamos todos os dias como o suplício da gota d’água; diremos somente da coisa capital que a república fez, faz e continuará a fazer. Estomagada com a liberdade de movimentos do bom gigante, resolveu amarrá-lo de novo. Foi às cartas régias da Metrópole e ressuscitou uma a uma todas as cordas e cipós fiscais rompidos pelos Pedros; recompô-las e começou a enlear pachorrentamente o pobre Gulliver. Amarra os braços, amarra as pernas, amarra as mãos; amarra, amordaça a boca para que não grite — e foi-se a Constituição; amarra, venda os olhos para que não veja — e lá se foi a imprensa.

Sobre o corpo de Gulliver desceram todos os arrochos. Não bastaram os cipós e cordas de invenção lusa; importaram-se cabos de aço, torniquetes complicadíssimos, borzeguins medievais, remodelados pela engenhosidade moderna. O Fisco tornou-se o objetivo supremo da república, a meta de todas as suas altas cogitações. Anualmente se reúnem, durante meses, centenas de técnicos cuja função é uma só: inventar novas torturas fiscais, novos aparelhos de sarjar as carnes e extorquir sangue à vítima.

Gulliver estertora. Todas as suas forças emprega-as em defender-se das cordas e ventosas que o Congresso torce e engenha. O Santo Ofício virou um marquês de Sade repartido em bancadas; não se contenta em tirar sangue, há que tirá-lo da maneira mais dolorosa, da maneira mais incômoda, da maneira mais lesiva ao organismo do bom gigante. A invenção do novo borzeguim — imposto da renda, excede a tudo quanto saiu da cabeça dos inquisidores: a vítima ignora o que tem de pagar e se não paga com exatidão incide em pena de confisco! E se em desespero de causa pede ao Fisco que lhe explique o mistério, que lhe dê a chave vertical e horizontal do quebra-cabeças, o marquês de Sade sorri e responde, diagonalmente:

— Pague com cheque cruzado, e explica com grande ironia de detalhes como se toma de uma régua, duma pena molhada em boa tinta e como se cruza um cheque.

Não há criatura neste país que não confesse um desânimo infinito. As energias do homem que trabalha e produz despendem-se por três quartos na luta contra a escolástica e o sadismo da cipoeira fiscal; sobra-lhe uma pequena parte para dedicar à sua indústria. Até esforço muscular dos dedos o sadismo do fisco lhe rouba. Pela manhã, ao acender o primeiro cigarro, tem que gastar o esforço de duas unhadas para romper o selo com que o fisco tranca as caixas de fósforos e os maços de cigarro.

Este engenhoso sistema de tortura tem em vista uma coisa só: permitir que sobre o corpo do gigante a vermina duma parasitalha infinita engorde em dolce far niente, como o carrapato engorda no couro do boi pesteado.

Vermina ininteligente! Consultasse ela os carrapatos e receberia deles um conselho salutar:

— É perigoso levar a sucção a grau extremo; morre o boi, e com ele a parasitalha.

Será que nem o instinto da conservação própria consiga meter um raio de inteligência nos miolos do triatoma megista?