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sexta-feira, 31 de outubro de 2014
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Mia Couto (Moçambique)
Tal como rosas, algumas frases que selecionei do livro de contos: " Estórias abensonhadas "
do Escritor Mia Couto, Editorial Caminho
1. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo :
- Tenho que viver já, senão esqueço-me. (Pág.23)
2. Lugar de ave é nas alturas. (Pág.24)
3. Diamantino, nesse repente, mudou de alvorada para o poente. (Pág.32)
4. Numa palavra: chocado e chocalhado. (Pág.32)
5. Ananias. Depois, se derreou, infeliz como a casca sem a banana. (Pág.33)
6. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. (Pág.36)
7. Hortência ensaiou matematicar sua vida.
Mas não havia conta que fazer. (Pág.45)
Mas não havia conta que fazer. (Pág.45)
8. - Mas, Tia Tristereza: não será está chover de mais?
De mais ? E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. (Pág.48)
terça-feira, 28 de outubro de 2014
CHARLES CHAPLIN (1889-1977)
The Great Dictator's Speech
I’m sorry, but I don’t want to be an emperor. That’s not my business. I don’t want to rule or conquer anyone. I should like to help everyone - if possible - Jew, Gentile - black man - white. We all want to help one another. Human beings are like that. We want to live by each other’s happiness - not by each other’s misery. We don’t want to hate and despise one another. In this world there is room for everyone. And the good earth is rich and can provide for everyone. The way of life can be free and beautiful, but we have lost the way.
Greed has poisoned men’s souls, has barricaded the world with hate, has goose-stepped us into misery and bloodshed. We have developed speed, but we have shut ourselves in. Machinery that gives abundance has left us in want. Our knowledge has made us cynical. Our cleverness, hard and unkind. We think too much and feel too little. More than machinery we need humanity. More than cleverness we need kindness and gentleness. Without these qualities, life will be violent and all will be lost....
!/images/photos/0000/0874/Great_Dictator_Pub_140-6_normal.jpg! The aeroplane and the radio have brought us closer together. The very nature of these inventions cries out for the goodness in men - cries out for universal brotherhood - for the unity of us all. Even now my voice is reaching millions throughout the world - millions of despairing men, women, and little children - victims of a system that makes men torture and imprison innocent people.
To those who can hear me, I say - do not despair. The misery that is now upon us is but the passing of greed - the bitterness of men who fear the way of human progress. The hate of men will pass, and dictators die, and the power they took from the people will return to the people. And so long as men die, liberty will never perish. .....
Soldiers! don’t give yourselves to brutes - men who despise you - enslave you - who regiment your lives - tell you what to do - what to think and what to feel! Who drill you - diet you - treat you like cattle, use you as cannon fodder. Don’t give yourselves to these unnatural men - machine men with machine minds and machine hearts! You are not machines! You are not cattle! You are men! You have the love of humanity in your hearts! You don’t hate! Only the unloved hate - the unloved and the unnatural! Soldiers! Don’t fight for slavery! Fight for liberty!
In the 17th Chapter of St Luke it is written: “the Kingdom of God is within man” - not one man nor a group of men, but in all men! In you! You, the people have the power - the power to create machines. The power to create happiness! You, the people, have the power to make this life free and beautiful, to make this life a wonderful adventure.
Then - in the name of democracy - let us use that power - let us all unite. Let us fight for a new world - a decent world that will give men a chance to work - that will give youth a future and old age a security. By the promise of these things, brutes have risen to power. But they lie! They do not fulfil that promise. They never will!
Dictators free themselves but they enslave the people! Now let us fight to fulfil that promise! Let us fight to free the world - to do away with national barriers - to do away with greed, with hate and intolerance. Let us fight for a world of reason, a world where science and progress will lead to all men’s happiness. Soldiers! in the name of democracy, let us all unite!
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
Antonio Nobre (1867-1900)
Natal d'um PoetaEm certo reino, á esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.
Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa-fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!
E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:
Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!
António Nobre, in 'Só'
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.
Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa-fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!
E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:
Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!
António Nobre, in 'Só'
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
Lao Tse (604 a.C. - 531 a.C.)
Quem é qualificado não entra em disputas
Quem entra em disputas não é qualificado.
Quem sabe não é erudito.
Quem é erudito não sabe.
Quem é sábio nada armazena
Porque que faz aos outros
por si só faz com que tenha cada vez mais
Porque o que partilha com as pessoas
por si só faz com que tenha mais que muito.
Lao Tse
Tao Te King
Capitulo 81, Pág 167
Tradução António Miguel de Campos
Relógio D'Água Editores
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
terça-feira, 21 de outubro de 2014
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
Lao Tse
Trinta raios, em conjunto, formam o centro de uma roda.
É precisamente o que nele não existe
que dá utilidade ao veículo.
Molda-se o barro para fazer um vaso.
É precisamente o que nele não existe
que dá utilidade ao vaso.
Furam-se portas e janelas para fazer uma sala.
É precisamente o que nela não existe
que dá utilidade à sala.
Por isso,
O que existe é o que lhes dá valor.
O que não existe é o que torna úteis.
Lao Tse
Tao Te King
Capitulo 11, Pág 41
Tradução António Miguel de Campos
Relógio D'Água Editores
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
W. B. YEATS (1865-1939)
THREE MOVEMENTS
Shakespearean fish swam the sea, far away from land;
Romantic fish swam in nets coming to the hand;
What are all those fish that lie gasping on the strand ?
TRÊS MOVIMENTOS
Peixes Shakespearianos nadavam no mar, longe da costa;
Peixes românticos nadavam nas redes que os traziam à mão;
De que espécie será todo esse pescado que agoniza na praia ?
W. B. Yeats
Os Pássaros Brancos e outros Poemas
Pág 102 e 103
Tradução Maria de Lourdes Guimarães e Laureano Silveira
Relógio D'Água Editores
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
Livros 7/2014
Alentejo
Campo das Letras
74. Eugénio de Andrade
O outro nome da Terra
Limiar
75. Eugénio de Andrade
5 Poemas Poèmes Poems Poesie Gedichte
Campo das Letras
76. Eugénio de Andrade
Primeiros Poemas
As mãos e os frutos
Os amantes sem Dinheiro
Assírio & Alvim
77. Eugénio de Andrade
Coração do dia
Mar de Setembro
Assírio & Alvim
78. Eugénio de Andrade
Escrita da Terra
Homenagens
E outros Epitáfios
Assírio & Alvim
79. Eugénio de Andrade
Ostinato Rigore
Assírio & Alvim
80. Eugénio de Andrade
Os Afluentes do Silêncio
Assírio & Alvim
81. António Vieira
Sermão de Santo António aos Peixes
Desenhos de José Rodrigues
Prefácio de Luís Adriano Carlos
Grafismo de Armando Alves
82. T. S. Eliot
Quatro Quartetos
Tradução e Introdução
Gualter Cunha
Relógio D'Água Editores
83. Ana Maria Freitas
B.I. da Sereia
Apenas Livros Lda
84. Teresa Manjate
B.I. do Macaco
Apenas Livros Lda
85. Ana Maria Freitas
B.I. da Aranha
Apenas Livros Lda
86. Manuela Parreira da Silva
B.I. do Cavalo
Apenas Livros Lda
87. Sara Diogo
B.I. do Leão
Apenas Livros Lda
88. Cargaleiro
Obra Gravada 1954-2009
ACD Editores
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
terça-feira, 14 de outubro de 2014
MILTON TORTELLA & UNCLE MARCO !!!
Desde o primeiro momento ...
a certeza de uma parceria de sucesso !!!
Encontrar um Ilustrador que traz tanta riqueza no seu trabalho Artístico é raridade !!!
Para que possam avaliar melhor ...
Visitem o site dele :
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Lêdo Ivo by Gonçalo Ivo !!!
Anotações sobre a poesia de Lêdo Ivo
I
Guadalquivir e o tempo
Lêdo Ivo morreu muito jovem. Iria completar 89 anos. Das muitas vidas que viveu, esta, que ficou para trás, foi mais uma passagem na nebulosa floresta do tempo. Poetas não têm idade ou sequer morrem. São como bichos incômodos, insetos, conchas do mar a abrigar viscosos moluscos ou mesmo víboras, sempre a nos perturbar com sua morfologia misteriosa, ruídos e zumbidos indecifráveis. Herdarão a terra após o fim dos tempos.
Um fato ocorrido no cemitério de San Fernando em Sevilha, no dia 25 de dezembro de 2012, quando cremei o corpo de meu pai, confirmará o que digo. Enquanto transcorria a cerimônia da transformação de seu corpo em cinzas, convidei Leonardo, meu filho, a uma caminhada entre as frias aleias no início de mais uma manhã de inverno. Esta necrópole não está longe de um dos braços do rio Guadalquivir. Cemitérios são projetados e construídos como se fossem cidades. E os muros de San Fernando guardavam naquela manhã, antes do acontecimento da aurora, a silhueta de esguios toureiros contra um céu cada vez mais violáceo, fantasmas de cantantes de flamenco, divas, inúmeros e ilustres personagens locais. Entre as lápides negras adornadas por ferros e volutas retorcidas, esculturas invulgares, flores de plástico e fotografias esmaltadas a estampar faces esmaecidas, se esgueirou um pequeno gato. Vinha de outro reino. Mirava a tudo de forma traiçoeira, como se estivesse a hipnotizar os pequenos pássaros que desavisadamente pousavam na terra à procura de alguns grãos. Disse a Leonardo: “Seu avô reencarnou”. Pois os poetas são o instrumento insubstituível entre este e o outro mundo, aquele em que sonhamos com os olhos bem abertos. O felino, que pouco tempo depois se fartou de nossa companhia, saltou a outros sítios e vidas, desapareceu na manhã solitária rasgada pela imprecação dos primeiros raios de luz. E em mim deixou a dúvida de toda uma existência.
Lembrei-me então dos versos de Matsuo Basho em Sendas de Oku , traduzido por Octavio Paz e a mim por ele ofertado quando estive no México com Lêdo e Leda em 1982:
Los meses y los días son viajeros de la eternidad. El año que se va y el que viene también son viajeros. Para aquellos que dejan flotar sus vidas a bordo de los barcos o envejecen conduciendo caballos, todos los días son viaje y su casa misma es viaje. Entre los antiguos, muchos murieron en plena ruta. A mí mismo, desde hace mucho, como girón de nube arrastrado por el viento, me turbaban pensamientos de vagabundeo.
Logo se fez dia! Sevilha foi ficando cada vez mais distante e se tornando lembrança, enquanto o trem avançava e me levava de volta a Madri. Passei por túneis escuros e brumas entre montanhas recém-tocadas pela tempestade. Deixei também para trás o rio Guadalquivir, tão distinto de quando visto do céu, irregular como uma serpente. Sobre este rio, Lêdo Ivo escreveu em Um Brasileiro em Paris, de1953:
Guadalquivir
[...]
À água digo: o tempo não tem futuro,
presente ou passado. Coisa em si mesma
perpétua, é tábua infinita do mundo.
Guadalquivir sente isso: canta em pedra
Entre árvores o dia faz-se tempo,
cal íntegra que as pátinas não mancham,
lavada pela água suja do rio.
Dize-me, Guadalquivir, como pode
alguém viver sem tua companhia?
Passas cantando em mim e é belo o dia.
Lêdo Ivo não se contentou em atravessar comigo neste derradeiro inverno mais uma ponte sobre esse rio. Queria a eternidade de viver, morrer e renascer em sua companhia. É a eterna premonição dos poetas. Saber cantar o que será o novo dia. Transmutar no futuro as lembranças em tinta negra sobre a folha de papel amarelada pelo tempo.
Maré
Na praia de papel
respiro o ar do mundo.
Letras.
Na ortografia vive
todo o meu mistério.
Tinta.
O mar azul vomita
algas e medusas.
Signos.
A sujeira do mar
é meu patrimônio.
Canto.
Um brasileiro em Paris, 1953.
II
O Vento de Maceió
Há algo no ar, o cheiro do peixe, do sal, do sargaço, trazidos a terra pelo vento do mar, emblema natal e marca indelével nos recortes suavemente arredondados da costa verdejante, espécie de geometria, arquitetura de contenção a proteger coqueirais, mangues, lagoas, canaviais, memórias...
Neste horizonte, o poeta regressa todos os dias em navios, cargueiros avariados, carcomidos pela ferrugem que procuram o lugar certo para morrer.
Ainda em minha juventude, instado por meu pai, resolvi passar as férias de verão em Maceió, sua cidade natal. Havia sempre a carinhosa acolhida de tios e primos que até então desconhecia, e mesmo de "parentes" que ostentavam uma consanguinidade difusa, coisa comum neste canto do Brasil. Estas foram as minhas temporadas nordestinas, inesquecíveis, entre Maceió, Recife, João Pessoa, Caruaru, Areias, Deodoro, Penedo, Neópolis... Na minha primeira e verdadeira travessia do Rio São Francisco, a bordo de uma pequena piroga, me dei conta da imensidão de suas águas, que de tão excessivas guardavam em seu estuário as sombras terrosas de infinitas nuvens brancas, como se fossem borrões sendo levados para o mar, e em suas profundezas lodosas e traiçoeiras ocultavam jacarés, tartarugas, carapebas e piranhas. Nas margens desse rio/mar, em Neópolis, lavadeiras entoavam cantos, enquanto quaravam e secavam seus tecidos coloridos sob o sol.
III
A Cidade e os Dias
A paisagem urbana encarnará eternamente na poesia de Lêdo Ivo. E não só a bucólica, violenta e atemporal Maceió, deitada na lembrança do afeto, mas também a metrópole contemporânea em qualquer dos quatro cantos do mundo, a ostentar suas contradições, casa dos homens sem pátria ou sem brasão natal, onde a matéria da poesia pode vir do som da turbina do jato, dos gemidos dos amantes ou do ruído de um liquidificador – o humano, banal e comum...
Verifico que, após o autoexílio europeu – com base em Paris entre os anos de 1952 a 1954 – e posteriormente na temporada de inverno na América do Norte em 1963, a poesia de Lêdo Ivo sofre mutações.
Em 23 de novembro de 1963, John Fitzgerald Kennedy foi assassinado em Dallas, Texas. Lêdo Ivo, que na mesma época a convite deste governo visitava a América conhecendo universidades, escritores, pintores, cientistas, absorvendo o que então esta nação hegemônica tinha de melhor a oferecer do ponto de vista da cultura, assimilou, como poucos, o que seus sentidos alcançavam. De forma diferente do que fizeram os modernistas paulistas dos anos 1920, esse banquete que lhe é oferecido acrescenta mais do que empobrece ou torna caricatura. Sua escrita fica mais coloquial e terrena. Antes mesmo do golpe militar no Brasil, em 1° de abril de 1964, no seu livro Estação Central, com capa do jovem artista Rubens Gerchman, entoa em A Cartilha, no poema de abertura do livro:
Primeira Lição
Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.
Ao ficar rapaz
Ivo viu Eva
E aprendeu a amar.
E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
Seus comes e bebes.
Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.
E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?
Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.
Em 28 de agosto de 1963, somente alguns meses antes da chegada de meu pai aos Estados Unidos, houve a famosa caminhada sobre Washington, em que aproximadamente 250 mil pessoas ouviram o pastor negro Martin Luther King dizer em voz firme "I have a dream". Um ano antes, Bob Dylan, um dos melhores poetas e músicos de sua geração, entoaria o canto Blowing in the wind. Poemas de cunho social que fazem parte de Estação Central são para mim uma redescoberta. O livro é uma espécie de divisor de águas na produção literária de Lêdo Ivo. Não há mudanças estruturais na essência da escritura. É e sempre será a “mesma língua”, imagética, rica em significados e ambiguidades, oriunda do surrealismo descoberto na juventude, quando ainda menino folheava as páginas de um pequeno livro de cor amarela, adquirido no Recife com poemas de Rimbaud. O que muda e mudará a partir desse encontro com a América é o mundo, seu tamanho, e a parte habitada pelo poeta.
IV
Vargem Grande
E de súbito, em 1973, Maceió migra para outra geografia. No novo campo de cultivo e experimento poético, estrelas-do-mar, luzes e reflexos de navios ascendem e incrustam-se no negror do firmamento, desabando em seguida como tempestade sobre horizontes, vales, florestas e rios. É Vargem Grande, a parcela de terra escolhida para professar a nova cartilha. Canta o poeta no livro A Noite Misteriosa, Poesia, 1973 a 1982:
Vargem Grande
Afinal aprendi a ler a terra.
Este chão completa o céu: brancor de nuvens e constelações
onde pássaros pousam, banhados de sol....
Há um ar bucólico nos poemas de A Noite Misteriosa. Este mundo rural, incomum, nunca experimentado pelo poeta, agora com quase 50 anos de idade, é sentido como nova descoberta, possibilitando práxis inéditas.
Sucedem-se nesses poemas a referência a essa fração de paisagem agrária, metáfora do mundo e sua cosmogonia. Lenhadores, ferradores de cavalo, galpões abandonados, jumentos, ratos do mato, predadores, tempestades, florestas e astros em plena atividade são a seiva dessa sinfonia pastoral.
Advertência a um gavião
O gavião sobrevoa
a plantação de tomate.
Meu irmão gavião,
eu não aceito a morte.
Na partilha do mundo
não estarei ao teu lado.
Jamais admitirei
a usurpação do dia.
Só sei enfileirar-me
No cortejo da vida.
Meu caminho me leva
à floresta onde fluem
as fontes escondidas.
Mesmo longe adivinho
uma árvore que tenha
frescor de fruto ou ninho.
Gavião! Gavião!
embaixador do não,
o céu não pode ser
sepultura de pássaros.
A Noite Misteriosa, 1973/1982.
V
Lêdo Ivo o rei da Europa
O lugar sem chave
Quem guarda durante a noite
a chave do necrotério?
Necrotério não tem chave.
Ele sempre fica aberto
seja de noite ou de dia
numa incessante porfia
no vai e vem interminável
do entra e sai dos cadáveres.
Na fetidez do serão
há sempre alguém de plantão
a mão cansada de abrir
o gelado gavetão.
E cesse toda esperança:
a mortalha não tem bolso
para guardar a poupança.
Saibam todos os viventes:
semente do inexistente,
a vida sempre é de morte.
O derradeiro mistério
acaba no cemitério.
Para o defunto ilusório
que estima o logro do fogo
termina no crematório
na trituração dos ossos
na fumaça que se esgarça
e como um vômito alcança
o céu da desesperança
no céu sem céu e sem pássaros.
Relâmpago, livro inédito com 13 poemas a ser publicado em dezembro 2014, edições Valparaíso, Espanha.
Numa visita ao Museo del Prado, Lêdo puxa meu braço ao nos depararmos com Dos viejos comiendo, de Francisco de Goya. E, como quem se prepara para contar um segredo, sussurra: “Esta pequena pintura guarda toda poesia, miséria e mistério da vida e do mundo”. Não é só a identificação alinhada à estética do pintor aragonês. Próximo ao final de sua vida, em suas inumeráveis viagens, o poeta parecia caçar pelo mundo a razão ou função de existirmos. Queria tudo entender e tudo a que tivesse direito. Do transitório ao perene. Se seu mundo físico e fronteiras dilatavam-se, sua preocupação como artista fazia o caminho inverso. Seus últimos poemas estão imprecados de indagações existenciais, pensamentos filosóficos, tempos metafísicos e humanidade. Sua poesia alcança o derradeiro clarão do relâmpago. Como Goya e seu intangível Perro semihundido a mirar o nada.
Gonçalo Ivo, Paris, 2 de outubro de 2014.
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