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quarta-feira, 29 de abril de 2020

Oliveira Lima (1867-1928)




PERFIL DE DOM JOÃO VI

Dom João VI não foi o que se pode chamar um grande soberano, de quem seja lícito referir brilhantes proezas militares ou golpes audaciosos de administração: não foi um Frederico II da Prússia nem um Pedro I da Rússia. O que fez, o que conseguiu, e não foi afinal pouco, fê-lo e conseguiu-o, no entanto, pelo exercício combinado de dous predicados que cada um deles denota superioridade: um de caráter, a bondade; o outro de inteligência, o senso prático ou de governo. Foi brando e sagaz, insinuante e precavido, afável e pertinaz.

De sua amablidade contam-se traços de cativar. Quando a Arquiduquesa Leopoldina, após a cerimônia do casamento, chegou a São Cristóvão, que tinha sido preparado para receber os nubentes, encontrou nos seus aposentos particulares o busto do Imperador da Áustria, seu pai, e o Rei fez-lhe entrega, para que lesse e se distraísse, de um livro que, ao abrir e folhear, verificou ela comovida conter os retratos de toda a família ausente. (1)

Para avaliar sua esclarecida equidade, basta referir o que observou o cônsul Henderson: que os ingleses residentes no Rio, quando lhes ocorriam dificuldades sérias com a administração, preferiam muito dirigir-se diretamente ao monarca, sempre disposto a fazer justiça, a entender-se com seus ministros. Frequentes vezes na sua (2) obra, autor britânico elogia a cordura, a benignidade e o liberalismo de Dom João VI, que um escritor dos nossos dias (3) , confundindo a miragem com a perspectiva, intitula com mais espírito do que verdade histórica um “real fantoche”.

Também o ministro americano Sumter dizia gostar incomparavelmente mais de tratar com o Rei, cuja bondade reconhecia e proclamava, do que de tratar com seus conselheiros, sobre quem lançava a culpa de quanto pudesse suceder de mau. “Fala em termos favoráveis do Rei, mas julga péssima a condição da sociedade e altamente desaprova os mil vexames e abusos praticados com o povo em nome do Governo.” (4) Tão longe estava aquele diplomata de considerar o Rei uma nulidade, que nele admitia vontade sincera de cultivar boa inteligência e amizade com os Estados Unidos, reputando-o em tal assunto muito mais adiantado do que os seus cortesãos.

São traços todos esses mais autênticos e fidedignos na sua simpática nobreza de que as anedotas picarescas que valeram a Dom João VI um renome - talvez não usurpado se contido nos limites do desenho e não puxado até a caricatura - de desmazelo bonacheirão e de esperteza saloia, uma auréola barata de bonhomme Richard coroado, uma fama de rei filósofo, que apimentavam suas desventuras conjugais e a que emprestava verossimilhança o seu físico ingrato, homely como bruscamente o qualificou Prior.

Baixo, gordo, sanguíneo, tinha de aristocrático as mãos e pés muito pequenos, mas de vulgar as coxas e pernas muito grossas mesmo em relação à corpulência, e sobretudo um rosto redondo sem majestade nem sequer distinção, no qual avultava o lábio inferior espesso e pendente dos Habsburgos, sem, porém, a maxila protuberante e o queixo pontudo de alguns dos príncipes austríacos, cujos retratos nos foram legados por célebres artistas - que decerto não aninhariam tal propósito maldoso - como exemplares indiscutíveis de degenerescência.

Em Dom João VI as imperfeições de todo ser humano não chegavam para que desmerecessem as sólidas qualidades. Se era tímido, pusilânime mesmo, como tal egoísta, ressentido, ciumento de atenções, amigo de monopolizar as deferências e inimigo de perdoar os agravos menores, também era clemente, misericordioso nas grandes ocasiões quando se fazia apelo direto ao seu coração, arguto em qualquer emergência, raramente ou nunca perdendo o equilíbrio moral, tão generoso para com seus fâmulos e validos quanto econômico consigo, estudioso aferrado dos negócios públicos e governante invariavelmente bem-intencionado. Eram aqueles em suma pequenos defeitos a contrapor a um belo conjunto de virtudes, raro num monarca despótico.

Seu senso político revelou-se em muita ocasião. Um dos mais fracos soberanos da Europa, vimos ter sido o único que escapou às humilhações pessoais por que fez Napoleão passar os representantes do direito divino: os Bourbons da Espanha e da Itália, ludibriados, depostos, vagabundos ou cativos; o Rei da Prússia, expulso dos seus Estados; o César austríaco, compelido a implorar a paz e conceder ao aventureiro corso a mão de sua filha; o próprio Czar, ora tendo que aceitar intimidades em entrevistas memoráveis, ora que rebater a invasão devastando províncias do seu Império.

 

(1) Debret, Voyage Pittoresque, vol. III.

(2) A History of the Brazil.

(3) Paul Groussac, no est. cit. sobre S. Liniers.

(4) Brackenridge, Voyage to South America, performed by order of the American Government in the years 1817 and 1818, in the Frigate Congress, Baltimore, 1819. O Autor ia como secretário dessa missão política ao Rio da Prata, mandada inquirir da situação das Províncias Unidas.

(Dom João VI no Brasil, 1909)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Augusto de Lima (1859-1934)





RISO E PRANTO


Duas frações o grande todo humano

Encerra: uma que ri, outra que chora.

Dúplice monstro, contrastado Jano,

Tem numa face - a noite, e noutra - a aurora.

 

Mas em seu seio eternamente mora,

Como o polipo no profundo oceano,

A dor que o riso mentiroso enflora,

A mesma dor que verte o pranto insano.

 

Basta que riso ou lágrima ressume

Da contração de um músculo irritado,

Temos amor, pesar, ódio ou ciúme.

 

Nem sempre o riso é uma expressão de agrado,

E às vezes quem mais chora se presume

Feliz, por parecer mais desgraçado.

 

                        (Símbolos, 1892)

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Goulart de Andrade (1881-1936)




POR QUÊ?

Ris, se digo que és boa; e se te digo
Que és má, tomas um ar de indiferença...
Fazes um gesto vago de descrença,
Quando afirmo serei teu muito amigo...

Se de tuas promessas te desligo,
Amuas-te; e é fatal a desavença,
Ao te falar da gratidão imensa
E do respeito meu para contigo...

Se as mãos te beijo, cedes; mas, fremente,
Se a procuro, essa boca me resiste!...
Enfado-me, gargalha loucamente!

Não sei, porém, se alta razão te assiste,
Se a atitude é de sábio ou de demente,
Quando, ao jurar que te amo, ficas triste!

(Ocaso, 1934.)

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Pedro Salinas





 Pedro Salinas 


Ayer te besé en los labios...

Ayer te besé en los labios. 
Te besé en los labios. Densos, 
rojos. Fue un beso tan corto, 
que duró más que un relámpago, 
que un milagro, más. El tiempo 
después de dártelo 
no lo quise para nada ya, 
para nada 
lo había querido antes. 
Se empezó, se acabó en él.

Hoy estoy besando un beso; 
estoy solo con mis labios. 
Los pongo 
no en tu boca, no, ya no... 
-¿Adónde se me ha escapado?-. 
Los pongo  
en el beso que te di 
ayer, en las bocas juntas 
del beso que se besaron. 
Y dura este beso más 
que el silencio, que la luz. 
Porque ya no es una carne 
ni una boca lo que beso, 
que se escapa, que me huye. 
No. 
Te estoy besando más lejos.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Pedro Salinas (1891-1951)



¿ Por qué tienes nombre tú,

Día, miércoles ?

¿ Por que tienes nombre tú,

Tiempo, otoño ?

Alegria, pena, siempre

¿ Por que tenéis nombre: amor ?



Si tú tuvieras nombre,

Yo no sabría qué era,

Ni cómo, ni quando. Nada.



¿ Sabe el mar como se llama,

Que es el mar ? ¿ Saben los vientos 

Sus apellidos, del Sur

Y del Norte, por encima 

Del puro soplo que son ?



Si tú no tuvieras nombre,

Todo sería primero,

Inicial, todo inventado 

Por mi.

Intacto hasta el beso mío.

Gozo, amor : delicia lenta

De gozar, de amar, sin nombre.



Nombre, ¡ qué puñal clavado

En medio de un pecho cándido 

Que sería nuestro siempre 

Si no fuese por su nombre !

quinta-feira, 16 de abril de 2020

San Francesco by Giotto



Un fondamentale contributo alla sua diffusione è stato offerto da Giotto, grazie al famoso affresco collocato nella Basilica superiore di Assisi (dipinto tra il 1290 e il 1295), che riproduce la scena con tocchi di grande poesia: il Santo è rappresentato invecchiato e il suo volto esprime una grande dolcezza.

Questo episodio è riportato nelle Fonti, narrato da san Bonaventura: «Andando il beato Francesco verso Bevagna, predicò a molti uccelli; e quelli esultanti stendevano i colli, protendevano le ali, aprivano i becchi, gli toccavano la tunica; e tutto ciò vedevano i compagni in attesa di lui sulla via».

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A time to ...



For everything there is a season, and a time for every matter under heaven:

a time to be born, and a time to die;
a time to plant, and a time to pluck up what is planted;
a time to kill, and a time to heal;
a time to break down, and a time to build up;
a time to weep, and a time to laugh;
a time to mourn, and a time to dance;
a time to cast away stones, and a time to gather stones together;
a time to embrace, and a time to refrain from embracing;
a time to seek, and a time to lose;
a time to keep, and a time to cast away;
a time to tear, and a time to sew;
a time to keep silence, and a time to speak;
a time to love, and a time to hate;
a time for war, and a time for peace.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Páscoa 2020



Páscoa 2020


Eis que conseguimos chegar na famosa sexta feira Santa ! 


Ano Domini 2020 !


Mundiais Mudanças !


Para onde vamos ?


Continuamos sem saber !


Parece até que aumentamos as nossas dívidas e dúvidas ... 


Momento de escolher pouco ...


Momento de curtirmos 

nossa Família, 

nossos Amigos, 

nossos familiares, 

nossos conhecidos e 

nossos desconhecidos !!!


Momento de não  cobrarmos nada de ninguém ...


Momento de Refletir  !!!


Momento de Resignação !!!


Momento de Acalmar as tempestades que temos dentro de nós ...


Momento de Agradecer ...


Momento de Ressuscitar ...


os Vivos e 

os supostos Mortos !!!


Enfim ...


Que todos tenhamos uma ...


Excelente Páscoa !!!

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Marco Lucchesi



Metamorfoses de Ovídio

A literatura clássica legou ao futuro um de seus melhores paradoxos: a metamorfose e sua tremenda ambiguidade. O fenômeno consiste em assumir o lugar do Outro, sem deixar de ser o Mesmo. Nem Um. Nem Outro. Mas Um e Outro. O Direito e o Avesso. Como Zeus e o Cisne.  O médico e o monstro. O diabo e a dama.  Eis o prodígio: tornar possível o impossível.  A ideia e seu contrário. Isto e Aquilo.

    

A metamorfose é dos fenômenos mais afortunados da Literatura. Confundiu Quixote, com seus moinhos-gigantes. Perturbou Gregor Samsa, homem-inseto. Feriu Apolo, quando abraçou uma Dafne-vegetal. Perdeu Ulysses, no corpo-mundo de Molly. Fez de Fausto uma crisálida, e o marcou de infinito.  Tornou incertas as fronteiras.

    

Mas qual a origem do mistério?  A trama do Universo? A ira de um deus?  O vento imaterial da angústia?

Difícil precisar-lhe uma razão. Todas concorrem, por exemplo, no Asno de ouro,  de Apuleio, com sua estranha e fascinante, plástica e repulsiva metamorfose,  do  jovem que toma as formas de um asno. Depois de muito sofrer, torturas e humilhações, lágrimas e castigos sem precedentes, Ísis sente-se comovida e decide salvá-lo. Num longo ritual, previsto em sonho, ele reassume as formas humanas. O couro áspero agora é pele. As orelhas diminuem. O rabo desaparece. Termina, enfim, a desventura de Lúcio, cuja metamorfose o levou ao conhecimento profundo de si.

Mas houve outras mudanças e nem sempre reversíveis. Ovídio foi quem as soube contar melhor nas Metamorfoses. Boa parte do imaginário Ocidental depende desse livro, como vemos no Inferno de Dante, nos primeiros versos de Boccaccio, no Livro dos seres imaginários, de Borges, sem falar de Italo Calvino, de suas leituras velozes, tomadas cinematográficas e mudanças de plano.

Mais do que um acervo mitológico, as Metamorfoses, de Ovídio, vivem pelo triunfo da Poesia. E trazem com elas o maravilhoso, o resquício do Pensamento Antigo:  o combate da ordem e do caos, do repouso e do movimento, do metro e da desmedida. Discordia semina rerum: a contradição é o motor das coisas.  Primeiro, o Caos, o informe, o ainda-não. E, de repente, de suas entranhas, um Princípio, um Sentido. A forma surge do informe. Os raios, das trevas. Como na Teogonia, de Hesíodo, na física dos pré-socráticos, na Geometria de Platão. A metamorfose seria a memória desse combate. A sombra de Dionísio, em Apolo. A permanência no impermanente. Por isso talvez a leve melancolia nas Metamorfoses...

Ovídio fez inúmeros leitores, pelo mundo e pelos séculos. Não lhe faltaram, desde o Renascimento, traduções memoráveis, na Itália e na França, na Espanha e em Portugal. Ovídio tornou-se escola obrigatória na arte de imitar. Era preciso matricular-se nele para provar-se como poeta. Mas seria sobretudo no século XVIII que as  traduções de Ovídio, junto com as de Lucrécio, deviam adquirir novo papel. Era o início – mais ou menos direto – de certa arqueologia do Iluminismo.  O conhecimento  racional dos mitos. O fundamento da matéria e seus rigores. Tal a razão pela qual eram vertidos os textos clássicos, que evocassem ideias sensistas, ou empiristas. Um  desses emblemas, na Itália, foi o De rerum natura, de Marchetti, a alma Vênus lucreciana, a chuva monótona das partículas e sua ligeira inclinação. Outro emblema, em  Portugal, foram as Metamorfoses, com seu naturalismo algo contrapontístico, diante da História natural, de Buffon, que cristalizara, brilhantemente, todo processo,  todo movimento, toda transformação, para atender ao quadro classificatório de reinos, classes, famílias. As figuras flutuantes de Ovídio estariam mais próximas (para  os leitores de outrora) de A origem das espécies, de Darwin, de 1859. De todo modo, a grande tradução das Metamorfoses deu-se pelo talento do poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, num Portugal pós-Verney, não-jesuíta, menos metafísico e escolástico, buscando no mundo clássico aproximações outras com as ideias que sopravam pela Europa.  

Tradutor de obras diversas, Bocage fez Ovídio falar num límpido decassílabo português. Sua graça e atualidade são desconcertantes. No Ouro de Midas. Na Gruta da Inveja. No abismo de Faetonte.  Os poucos extratos, em que trabalhou o poeta português, foram bastantes para a  tradução ideal do todo. Temos um Bocage, ao mesmo tempo, lírico e matemático. Observador atento da sintaxe latina, e de suas aproximações em português, como deslocamentos à esquerda, mudanças de posição frasal, linguagem alta e fraseado lírico, compensando, com decassílabos diversamente acentuados, a delicada relação do verso latino, arrimado nas sílabas longas e breves. O  texto-origem e o texto-fim parecem realmente congeniais... O tradutor, em momento algum, decide apagar-lhe o rosto. Ovídio – pelas mãos de Bocage – não deixa de lembrar Ovídio.  Donde o mérito da  obra. O ter evitado um dos grandes riscos, de que se deve guardar o tradutor, com seu possível (e não infrequente) menoscabo do texto-origem. Claro que a sua digital jamais desaparece. E, por isso mesmo, não lhe convém melhorar Virgílio ou Shakespeare, para demonstrar, no texto sequestrado, o preço de um patético narcisismo. Reconhecemos o decassílabo de Bocage, na tradução, mas não o encontramos a cada fragmento traduzido, com a desculpa de Ovídio. Nesse campo, a melhor forma de aparecer,  traduzindo, consiste em desaparecer, pois o mérito do coautor (leia-se do tradutor) repousa na  obstinada vigilância do original. De sua fonte. De seu diálogo. O subjetivo é como o rei Midas.  Como o observador na física quântica. Assim, pois, se o sujeito jamais desaparece, não será preciso sublinhar sua visibilidade...

 

Hoje assistimos a estranhas mutações, de frutas e legumes, de células e embriões, a metamorfose possível – fora do debate da bioética e do genoma – é a da  tradução, onde coabitam o Um e o Outro, o Direito e o Avesso, Zeus e o Cisne. Numa palavra: os universais fantásticos, diante de novos e diversos paradigmas, da leitura e da ciência, respondem pelo sorriso do caos.  A tradução é a derradeira metamorfose...    

segunda-feira, 6 de abril de 2020

FAGUNDES VARELA (1841-1875)



A FLOR DO MARACUJÁ

 

Pelas rosas, pelos lírios, 

 Pelas abelhas, sinhá, 

 Pelas notas mais chorosas 

 Do canto do Sabiá, 

 Pelo cálice de angústias 

 Da flor do maracujá! 

 Pelo jasmim, pelo goivo, 

 Pelo agreste manacá, 

 Pelas gotas de sereno 

 Nas folhas do gravatá, 

 Pela coroa de espinhos 

 Da flor do maracujá. 

 Pelas tranças da Mãe-d’água 

 Que junto da fonte está, 

 Pelos colibris que brincam 

 Nas alvas plumas do ubá, 

 Pelos cravos desenhados 

 Na flor do maracujá. 

 Pelas azuis borboletas 

 Que descem do Panamá, 

 Pelos tesouros ocultos 

 Nas minas do Sincorá, 

 Pelas chagas roxeadas 

 Da flor do maracujá! 

 Pelo mar, pelo deserto, 

 Pelas montanhas, sinhá! 

 Pelas florestas imensas 

 Que falam de Jeová! 

 Pela lança ensanguentada 

 Da flor do maracujá! 

 Por tudo que o céu revela! 

 Por tudo que a terra dá 

 Eu te juro que minh’alma 

 De tua alma escrava está!... 

 Guarda contigo este emblema 

 Da flor do maracujá! 

 Não se enojem teus ouvidos 

 De tantas rimas em - a - 

 Mas ouve meus juramentos, 

 Meus cantos ouve, sinhá! 

 Te peço pelos mistérios 

 Da flor do maracujá!

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Pedro Lessa (1859-1921)




A HISTÓRIA ANTES DE BUCKLE

 

Na Grécia e em Roma, consistia a missão do historiador em narrar os acontecimentos memoráveis. Obra de arte, e não de ciência, a história se escrevia geralmente para perpetuar, encarecendo, os feitos militares, ou políticos; e seu principal merecimento estava em reproduzir tradições e crônicas, muitas vezes infiéis, sob os primores literários do estilo descritivo. Dionísio de Halicarnasso nota uma certa semelhança entre a forma animada e pitoresca da História de Heródoto e a dos poemas de Homero. A profunda concisão de Tucídides e a perfeição ática de Xenofonte fizeram da História da guerra do Peloponeso e da Retirada dos dez mil, inimitáveis modelos de narração. Salústio, de quem dizia o poeta Marcial primus romana Crispus in historia, exige do historiador, como primeira condição de sucesso, “uma linguagem à altura dos acontecimentos”. Sem embargo das suas qualidades de homem de ação, dos seus dotes de incomparável cabo de guerra, César foi exímio na gramática e na retórica; e tão rigoroso era o seu classicismo, que aconselhava a evitar as expressões novas ou incorretas, com a mesma solicitude com que o marinheiro deve fugir das penedias. É por isso que Cícero, segundo o testemunho do Suetônio, admirava o estilo puro dos Comentários, ao ponto de recomendar que ninguém “bordasse sobre essa talagarça”. Tito Lívio é a eloquência romana: tendo vindo já muito tarde quando a liberdade era apenas uma tradição para exercitar os seus talentos oratórios, e achando interdita a tribuna das arengas forenses, transportou o rosto para as Décadas, e, no dizer de Taine, “il fut historien pour rester orateur”. Quinto Cúrcio, um simples teórico, a nenhum escritor cede na descrição das batalhas. A energia, a profundeza e o brilho do estilo de Tácito, que “a poesia, o ódio e o estudo inflamaram e sombrearam”, só se encontram uma vez na história.

Mas, sob as formas atraentes, ou empolgantes, dessa consumada arte de descrever, não se procure, pois frequentemente seria vão esforço, apurar a fidelidade das informações, inquirir a verdade dos fatos. Não se observavam, porque se ainda não conheciam, os cânones da heurística, da diplomática e da crítica de interpretação, sem os quais ninguém hoje se aventura à árdua tarefa da historiografia. Raros historiadores, ao reconstruírem os fatos políticos e militares da vida de um personagem, de uma família ilustre, ou de um povo, em determinado período (e cifrava-se nisso a História), procediam a um escrupuloso exame das provas, ou se davam ao ímprobo labor de cirandar meticulosamente os documentos. Quão poucos poderiam repetir, convencidos, as palavras de Tucídides: “No que toca à verdade dos fatos, diz o autor da História da guerra do Peloponeso, não dei crédito às primeiras pessoas que encontrei, nem às minhas impressões pessoais; narrei somente os acontecimentos de que fui espectador, ou sobre os quais adquiri informações precisas e de certeza absoluta.” Na Anábase, Xenofonte descreve fatos de que foi testemunha, porquanto fez parte da expedição de Ciro, o moço, a qual comandou depois da morte de Clearco, e por isso a sua narrativa se aceita como verdadeira; mas, na Ciropédia, tanto desdenhou a verdade, que é hoje opinião unânime não passar a história de Ciro de um romance moral. Em verdade, aquele jovem príncipe, dotado pela natureza de todos os encantos imagináveis do espírito e do corpo, educado no seio de um povo singular, que a tudo antepunha a utilidade pública, e de tal arte formava o coração de seus filhos, que estes não cometiam jamais atos censuráveis, nem tinham nunca motivo para corar; aqueles bárbaros, tão zelosos cultores da justiça, que nas escolas só ensinavam as normas do Direito, tão imbuídos dos preceitos da mais pura ética, que escrupulosamente praticavam todas as virtudes mais tarde preconizadas pelo Cristianismo; aquele perfeito e elevadíssimo estoicismo, que nos faz antever em cada persa, sectário da religião mazdeísta, o mais bem acabado protótipo do místico medieval; tudo isso por certo pode constituir o ornato e o ensinamento moral de um livro destinado à educação da juventude, mas destoa profundamente da severidade do historiador. Se, para escrever a Retirada dos dez mil, Xenofonte fez de Tucídides o seu modelo, quanto à fidelidade da exposição, na Ciropédia imitou o Pai da História, o qual com fábulas e lendas, entretecidas nos fatos, compôs os seus nove livros, consagrados às nove musas, e que mais se assemelham aos cantos de uma epopeia do que aos capítulos de uma História.

Não obstante o manifesto desdém de Quintiliano, ao aludir às histórias gregas, os historiadores romanos não foram menos descaroáveis para com a verdade. Dificilmente compreendemos hoje o modo como Tito Lívio se preparou para escrever a História, a sua absoluta ausência de curiosidade quanto aos documentos e testemunhos com que devia cimentar as suas narrativas. Era-lhe fácil ir ao tesouro público e ao templo das Ninfas, para ler sobre as tábuas de bronze as leis régias e tribunícias, os antigos tratados celebrados com as nações vencidas pelo povo romano, os decretos do senado e os plebiscitos; cumpria-lhe, ao menos, recorrer aos anais preparados pelos pontífices, que minuciosamente foram anotando todos os acontecimentos merecedores de transcrição na história romana; mas Tito Lívio teve por indigno de si proceder a essas pesquisas, aliás tão fáceis a um cidadão romano; nem sequer visitou os lugares onde se passaram muitos dos feitos militares, por ele descritos. Daí os equívocos, os erros, as falsidades, que abundam nas Décadas. Salústio escreveu somente para revelar a admirável perfeição do seu estilo, e por isso “explorou a História, como se fora a sua província de África, como egoísta e artista de gênio”, tratando apenas dos fatos suscetíveis de descrições brilhantes pela forma.

A História, para os gregos e romanos, é um gênero literário. A amplificação oratória, as ficções, o maravilhoso épico, inçam as narrativas, desfigurando os fatos, e subtraindo-os à justa apreciação dos mais claros e seguros entendimentos. O que constitui a sedução da História na Antiguidade é a língua, o estilo, a arte da composição, a movimentação dramática, fonte inesgotável de emoções e de prazer, a nos mostrar, em quadros animados da mais vívida eloquência, as grandes e fortes virtudes do heroísmo e do patriotismo.

Alguns historiadores desse período alimentavam a pretensão de fazer da História um vasto repositório de lições políticas e morais, a “mestra da vida”. Políbio e Plutarco foram insignes no gênero. Já Xenofonte tinha sido um iniciador, e Salústio fez preceder a cada uma de suas obras (Catilina, seu Bellum catilinarium, e Jugurtha, seu Bellum jugurthinum) um discurso da mais enaltecida moral, tão destoante da vida de quem foi expulso do Senado por suas escandalosas imoralidades.

A Antiguidade clássica não fez da História uma ciência. Nem quanto a essa doutrina que, muitos séculos depois, se chamou a Filosofia da História, conseguiu mais do que rudimentar e grosseiro esboço. Apenas o gênio profundo de Tucídides teve uma percepção fugaz das leis a que estão sujeitos os fenômenos sociais: acreditava o autor da História da guerra do Peloponeso que seu estudo seria útil a todos que quisessem, partindo do conhecimento dos fatos passados, compreender os fatos futuros, que, “segundo as leis humanas serão semelhantes, ou análogos”. Mas, lançadas acidentalmente essa e outras observações de admirável justeza, o historiador grego prossegue em sua narrativa, sem induções, sem sistematizar os fatos, explicando, quando muito, os acontecimentos como um político, pela natureza das instituições, pelo papel desempenhado pelos partidos, pelo conflito dos interesses, pelo jogo das paixões, pela eloquência dos homens de Estado e pela tática dos homens de guerra. Ainda é a personalidade humana, a vontade individual ou coletiva, que ocupa a cena da História, como em Heródoto. Não se nota mais a sensibilidade ingênua, a imaginação juvenil de Heródoto, para quem a queda de um raio sobre os bárbaros reunidos junto aos muros do templo de Minerva Proneia, e o despenharem-se com fracasso dois rochedos do cume do monte Parnaso, são os maiores prodígios, os mais portentosos acontecimentos que pode narrar um historiador. O autor da História da guerra do Peloponeso não se eleva às causas naturais dos fatos, nem nos dá as leis a que aludiu no começo de sua crônica, em um rasgo assombroso do gênio. Continuador do método histórico de Tucídides é Políbio, que procura explicar a superioridade política e militar de Roma, comparando-lhe as instituições com as dos outros povos. Mas, toda a filosofia de Políbio está condensada nesta fórmula: “Cumpre estudar a constituição de um Estado, como a causa primordial dos bons e maus sucessos em tudo. É dessa constituição, como de uma fonte, que derivam as empresas e seus efeitos.” Salústio, Tito Lívio, Tácito, todos os historiadores romanos, nos dão uma única explicação da grandeza e da decadência de Roma: a cidade cresceu, elevou-se, dominou, em consequência de suas virtudes e por uma predestinação divina; decaiu, perdeu a liberdade e o império do mundo, em consequência da dissolução dos costumes, produzida pelo luxo. Não passa dessa rudimentar consideração a Filosofia da História em Roma.

Não se pretenda tampouco descobrir, nos historiadores gregos e romanos, a coordenação metódica dos fatos, a sistematização científica dos elementos preparados pelo historiador, para as generalizações das ciências sociais. Taine caracterizou bem a História, tal como foi compreendida pela Antiguidade clássica, dizendo que ela nos oferece unicamente uma sucessão de acontecimentos, e não classes de fatos. Preocupados com os feitos bélicos e as ações dos políticos, os historiadores do período greco-romano poucas ou nenhumas informações nos ministram sobre a indústria, o comércio, os costumes domésticos, a religião, a ciência, as letras, as artes liberais e mecânicas, sobre todos aqueles fatos estudados hoje pelos historiadores, como o conteúdo principal da História.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

CHARLES SANDERS PEIRCE (1839-1914)





“ É fácil ter a certeza. Só é preciso ser suficientemente indeciso. “


Textos Escolhidos 4,

 # 237


CHARLES SANDERS PEIRCE

(1839-1914)