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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Adeus a Sete Quedas - Carlos DRUMMOND de Andrade



Adeus a Sete Quedas

9 setembro 1982


Sete quedas por mim passaram, 

E todas sete se esvaíram. 

Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele 

A memória dos índios, pulverizada, 

Já não desperta o mínimo arrepio. 

Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes, 

Aos apagados fogos 

De ciudad real de guaira vão juntar-se 

Os sete fantasmas das águas assassinadas 

Por mão do homem, dono do planeta. 


Aqui outrora retumbaram vozes 

Da natureza imaginosa, fértil 

Em teatrais encenações de sonhos 

Aos homens ofertadas sem contrato. 

Uma beleza-em-si, fantástico desenho 

Corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno 

Mostrava-se, despia-se, doava-se 

Em livre coito à humana vista extasiada. 

Toda a arquitetura, toda a engenharia 

De remotos egípcios e assírios 

Em vão ousaria criar tal monumento. 


E desfaz-se 

Por ingrata intervenção de tecnocratas. 

Aqui sete visões, sete esculturas 

De líquido perfil 

Dissolvem-se entre cálculos computadorizados 

De um país que vai deixando de ser humano 

Para tornar-se empresa gélida, mais nada. 


Faz-se do movimento uma represa, 

Da agitação faz-se um silêncio 

Empresarial, de hidrelétrico projeto. 

Vamos oferecer todo o conforto 

Que luz e força tarifadas geram 

À custa de outro bem que não tem preço 

Nem resgate, empobrecendo a vida 

Na feroz ilusão de enriquecê-la. 

Sete boiadas de água, sete touros brancos, 

De bilhões de touros brancos integrados, 

Afundam-se em lagoa, e no vazio 

Que forma alguma ocupará, que resta 

Senão da natureza a dor sem gesto, 

A calada censura 

E a maldição que o tempo irá trazendo? 


Vinde povos estranhos, vinde irmãos 

Brasileiros de todos os semblantes, 

Vinde ver e guardar 

Não mais a obra de arte natural 

Hoje cartão-postal a cores, melancólico, 

Mas seu espectro ainda rorejante 

De irisadas pérolas de espuma e raiva, 

Passando, circunvoando, 

Entre pontes pênseis destruídas 

E o inútil pranto das coisas, 

Sem acordar nenhum remorso, 

Nenhuma culpa ardente e confessada. 

((assumimos a responsabilidade! 

Estamos construindo o brasil grande!)) 

E patati patati patatá... 


Sete quedas por nós passaram, 

E não soubemos, ah, não soubemos amá-las, 

E todas sete foram mortas, 

E todas sete somem no ar, 

Sete fantasmas, sete crimes 

Dos vivos golpeando a vida 

Que nunca mais renascerá. 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Eis que 2020 vai terminando ..



Um Ano indo embora ...

Para Felicidade de tantos ...

Esperando o novo !!!

Tantos perderam amigos e inimigos ...

Perder, perder e perder ...

Existirá verbo pior ?

Difícil resposta ...

Também perdem-se pessoas Vivas.

As vezes uma indiferença é fatal.

Uma não resposta ...

Um não olhar ...

Um não sorriso ...

Será que tudo é feito com consciência ou será lá, que vale filosofar ...

2020 talvez seja o Ano que tenhamos perdido mais.

Sempre resta a Esperança, que segundo a Mitologia Grega foi o que sobrou dentro da caixinha de Pandora.

Ainda temos alguns dias...

Que nestes últimos cinco dias, possamos transformá-los em créditos positivos para tentar compensar tanta tristeza.

Que saibamos enxergar melhor, do que aquelas duas estátuas que lá estão entrando Ano e saindo Ano imóveis nas suas atitudes.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Petrarca - Rime 195



De dia em dia, mudo rosto e pelo;

mas doce anzol não menos aboquei,

e em visco os ramos verdes não larguei

da árvor que não olha sol ou gelo.



Sem água o mar e o céu sem sete-estrelo 

seja, quando eu não tema ou não anseie

a bela sombra, ou não ame e odeie

a alta chaga amorosa que mal velo.



Não terei nesse afã repouso, até que

me desosse e desnerve e me despolpe,

ou minha imiga tenha compaixão.


E o impossível seja, antes que seque

a morte, ou ela, em seu olhar, o golpe

que Amor já me assestou ao coração.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Anna e seus amigos


Anna Speshilova

Anna caminhava pensando ...

Os amigos caminhavam observando ...

Saiam de manhãzinha e retornavam a tardinha...

Um belo dia começou a nevar e acabaram se perdendo ...

Logo apareceu mais um amigo que ajudou eles encontrarem o caminho de volta ...

Era o boneco de neve, que sempre aparece quando alguém está precisando de ajuda ...

sábado, 5 de dezembro de 2020

BOOKS 7/2020




82.

V. C. Vickers

Das Buch der schrägen Vögel

The Google Book

Übersetzung Harald Beck

Reclam 




83.

William Golding

Senhor das Moscas

Tradução de Sérgio Flaksman

Editora Alfaguara



84.

José Sarney

O Dono do Mar

Editora Leya



85.

Louise Glück

Nobel 2020

Meadowlands

Harper Collins Publishers



86.

Wilhelm Busch (1832-1908)

Max und Moritz (1865)

Italienische Nachrichtung von

Elena Corti-Ploj 

Philipp Reclam Verlag 



87.

Ruth Bader Ginsburg

I Know this to be true

Chronicle Books 

In association with 

Blackwell&Ruth



88.

Mario Vargas Llosa

Medio siglo con Borges

Alfaguara



89.

Emilio Salgari 

La sovrana del Campo D’oro

Oscar Mondadori 



90.

John Sellars 

Lessons in Stoicism 

Penguin Books



91.

Tomi Ungerer

Non Stop

Phaidom Press Inc





sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Ela escreve ...


Leaves,  Philip Taaffe


Então alguém te escreve :

Olha aquela pessoa não era eu, você sabia né ?

Me perdoe, não fiz por maldade.

Penso e reflito ...

Neste mundo tão louco, onde tantos querem ser o que poucos são ...

Sobra pouco espaço para tentar ser você mesmo.

Talvez falte entendimento  para compreender  melhor ...

Mas nos sobra tempo para perdoar e lembrar que afinal todos somos feitos de Carbono.


sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Que Felicidade ...



Photo by Lelê Berardo


Que Felicidade poder Enxergar ...

Que Felicidade poder Sonhar...

Que Felicidade poder entender metade do que nos falam ....

Que Felicidade poder ouvir sim, e outras tantas mais ouvir um não ...

Que Felicidade estar aqui Vivo !!!!

Graças a Deus ....

Amém !!!

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Books 6/2020



BOOKS 6/2020


61.

Isaac Asimov

Fundação (Livro I)

Editora Aleph



62.

Libretto Don Pasquale 

Musica Gaetano Donizetti

Testo Giovanni Riffini

Edizioni Ricordi 



63.

Libretto Un Ballo in Maschera 

Musica Giuseppe Verdi

Testo di Antonio Somma

Edizione Ricordi



64.

Leo Cunha 

Ilustrações André Neves

Um Dia, um Rio

Editora Pulo do Gato 



65.

Júlio Verne

Frritt Flacc 

Ilustrações Alexandre Camanho

Editora Pulo do Gato 



66.

Shel Silverstein

A parte que falta

Companhia das Letrinhas 



67.

Shel Silverstein

A parte que falta 

encontra o Grande  O

Companhia das Letrinhas



68.

Isaac Asimov

Fundação e Império (Livro II)

Editora Aleph



69.

Shel Silverstein

A Árvore Generosa

Companhia das Letrinhas



70.

Antonio da Silva Mello (1886-1973)

Cadeira XIX

Discurso ABL

em 16 de agosto de 1960

Recepção de Múcio Leão 

ABL



71.

Afrânio Coutinho

Cadeira XXXIII

Discurso ABL

em 20 de julho de 1962

Recepção de Levi Carneiro 

ABL



72.

Eros Grau

A(s) mulher(es) que eu amo

Editora Globo



73.

Odilon Moraes

Rosa

Edições Olho de Vidro



74.

Raquel de Queiroz 

O Quinze

Editora José Olympio



75.

Michel Piauemal & Thomas Baas

O Pequeno Filósofo, Isto é meu !

Editora Vergara & Riba 



76.

Antonio Gramsci

O Rato e a Montanha

Ilustrações Laia Domènech

Editora Boitatá 



77.

Augusto Meyer

Machado de Assis (1935-1958)

Prefácio de Alberto da Costa e Silva

Jose Olympio Editora 



78.

Catálogo do Acervo da

Fundação Athos Bulcão 

Organizadores :

Rafaella Tamm

Valéria Maria Lopes Cabral

Vitor Borysow

Fundação Athos Bulcão 



79.

Cruz e Sousa

Negro

Organização, introdução de 

Zilma Gesser Nunes

Edições Caminho de Dentro 



80.

Stéphane Mallarmé

Um Lance de Dados

Tradução Álvaro Faleiros

Ateliê Editorial 



81.

Stela Barbieri

Aboborela 

Ilustrações Fernando Vilela

Editora Pulo do Gato



















quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ela


Slava Fokk,   After the Rain


E assim ela sonhava com o retorno do amado.


Ele tinha viajado para bem longe, prometendo um dia voltar ...


Voltaria ?


Se tivesse um barco e o vento ajudasse ...


Assim é a Esperança 


Na ausência de realidades possíveis, sobra a fé no impossível !

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Escultor Vieira



VIEIRA

Vieira, de Ilha do Ferro, AL, convive com a arte desde menino. Seu pai, além de construtor de embarcações era um escultor maravilhoso em pequenos formatos. Usava o cedro para desenvolver suas obras de acabamento primoroso.

Vieira é inventivo e tão meticuloso quanto o pai. É um escultor pintor e trabalha envolvendo outros materiais em suas invenções.

Vieira produz em madeira barcos, animais, seres e homens e mulheres inspirados na região que nasceu e vive. Todas as obras são pintadas em tinta óleo em cores quentes. Suas mulheres sempre estão vestidas com roupas alegres e carregam próximo ao peito um broche, ou se enfeitam com brincos de miçangas (aproveitamento de bijuterias quebradas e sem uso).
Além desse rico imaginário, o artista desenvolve algumas peças utilitárias – mobília – cadeiras de balanço, namoradeiras que trazem em suas pinturas cenas do sertão ou temas como amor e liberdade.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Estou triste



Estou triste ...


Tantas pessoas partindo ...


Não consola saber se são mais más do que boas ... 


E se forem mais boas do que más ?


Aliviaria a Dor ?


Claro que não ...


A pior pessoa do mundo, pode ser a melhor pessoa para alguém ...

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Dois Barcos Parados


Duilio Barnabé, Boats in a Harbor (ca 1950s)


Temos a impressão que dois barcos vivem parados...
Estão apenas descansando da última viagem e já pensando na próxima.
Pensar também é uma forma de descansar. 
Para os humanos as vezes, o pensamento se transforma em cansaço, e até de dor.
Como dói pensar ...

Temos que aprender com os barcos que navegam contra ou a favor do vento, dependendo do destino.

E na maioria das vezes vão ao lugar desejado e quando não lembram dos famosos versos de Leopardi ...

“ E il naufragar m'è dolce 

in questo mare.”

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Antonio Machado



Tutto passa e tutto resta,
però il nostro è passare,
passare facendo sentieri,
sentieri sul mare.

Mai cercai la gloria,
né di lasciare alla memoria
degli uomini il mio canto,
io amo i mondi sottili,
lievi e gentili,
come bolle di sapone.

Mi piace vederle dipingersi
di sole e scarlatto, volare
sotto il cielo azzurro, tremare
improvvisamente e disintegrarsi…
Mai cercai la gloria.

Viandante, sono le tue orme
il sentiero e niente più;
viandante, non esiste il sentiero,
il sentiero si fa camminando.

Camminando si fa il sentiero
e girando indietro lo sguardo
si vede il sentiero che mai più
si tornerà a calpestare.

Viandante non esiste il sentiero,
ma solamente scie nel mare…
Un tempo in questo luogo dove
ora i boschi si vestono di spine,
si udì la voce di un poeta gridare
“Viandante non esiste il sentiero,
il sentiero si fa camminando…”

Colpo a colpo, verso dopo verso…

Il poeta morì lontano dal focolare.
Lo copre la polvere di un paese vicino.
Allontanandosi lo videro piangere.
“Viandante non esiste il sentiero,
il sentiero si fa camminando…”

Colpo a colpo verso dopo verso…

Quando il cardellino non può cantare.
Quando il poeta è un pellegrino,
quando non serve a nulla pregare.
“Viandante non esiste il sentiero,
il sentiero si fa camminando…”

Colpo a colpo, verso dopo verso.

Antonio Machado

* * *

Todo pasa y todo queda
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.

Nunca perseguí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles
como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse de sol y grana,
volar bajo el cielo azul,
temblar súbitamente y quebrarse…
Nunca perseguí la gloria.

Caminante son tus huellas el camino y nada más;
caminante, no hay camino se hace camino al andar.

Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino sino estelas en la mar…

Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
Caminante no hay camino, se hace camino al andar…

Golpe a golpe, verso a verso…
Murió el poeta lejos del hogar
le cubre el polvo de un país vecino.
Al alejarse, le vieron llorar.
“Caminante, no hay camino, se hace camino al andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…
Cuando el jilguero no puede cantar
cuando el poeta es un peregrino,
cuando de nada nos sirve rezar.
Caminante no hay camino, se hace camino al andar.

Golpe a golpe, verso a verso.

Antonio Machado

* * *

Everything goes and everything stays
but our fate is to pass
to pass making a path as we go,
paths over the sea,

I never pursued glory,
or to leave on the memory
of the men,this my song:
I love the subtle worlds,
weightless and gentle
like soap bubbles.

I like to see them paint themselves on sun and crimson,
fly under a blue sky
shudder suddenly, and break…
I never pursued glory.

Traveler , your footprints are the path, and nothing else.
Traveler, there is no path. A path is made by walking.

A path is made by walking,
and in looking back one sees
the trodden road that never
will be set foot on again.
Traveler, there is no path, but wakes on the sea…

Some time ago on that place
where today the woods dress in brambles
the voice of a poet was heard shouting
¨Traveler, there is no path. A path is made by walking”.

Blow by blow, verse by verse…
The poet died far from home
and is covered by the dust of a neighboring country.
As he went away, he could be heard crying,
“Traveler, there is no path. A path is made by walking”.

Blow by blow, verse by verse…
When the robin can no longer sing,
when the poet is a pilgrim,
when praying is no more of use.
Traveler, there is no path. A path is made by walking.

Blow by blow, verse by verse.

Antonio Machado

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Antônio da Silva Mello (1886-1973)




AS QUALIDADES INSTINTIVAS DO NEGRO, SOB O PONTO DE VISTA ARTÍSTICO E EMOCIONAL


Sabemos que os pretos têm muito da criança pela candura, pela espontaneidade, que se revela tanto na sua capacidade para admirar e imitar, quanto para desconhecer os verdadeiros perigos, enchendo-se de terror diante dos imaginários. Já tem sido afirmado que o preto, no fundo, representa um tipo dionisíaco, sendo mais emotivo, mais sensual, mais instintivo, mais telúrico. Ele se encontra mais perto das forças cósmicas primordiais e, por isso, também mais afastado das questões intelectuais, das lucubrações dialéticas, do trabalho cerebral mais consciente. Os negros se movem mais pelo sentimento e a emoção, deixam perceber melhor as profundezas do inconsciente, esse inconsciente pré-lógico que tem sido recalcado pelos séculos e sofrido a poderosa influência da civilização, civilização mais intelectual, que tem muito de cerebrina, de artificial, de contrária à verdadeira vida instintiva. Se, levados pela inteligência, atravessamos assim uma barreira, alcançamos outro lado, penetramos noutra região, não há dúvida que sentimos com frequência aquela nostalgia que vem das profundezas da alma e talvez nada mais traduza do que conflitos criados dentro da nossa natureza, conflitos, portanto, estritamente humanos e que podem ser causa de nossa infelicidade, mesmo de algumas das nossas enfermidades.

Não outro senão o célebre racista Gobineau afirmou que a fonte das artes está oculta no sangue dos negros, cujas aptidões podem exceder as do homem branco. “Onde há mais sangue preto, aí, disse ele, brota a poesia lírica, a imaginação desenfreada, a sensação dominante da vida.” Frobenius, sábio alemão, disse que os pretos têm mais humanidade nas suas fábulas, que os seus contos são carne viva, enquanto os nossos, para eles, não passam de ossos sem carne. Por isso, não é de admirar que se identifiquem com qualquer povo até o excedendo no que possa ter de mais profundo e instintivo. Já tem sido chamada a atenção para o fato de Púshkin, de ascendência negra, ser mais russo, traduzir melhor as tendências desse povo do que qualquer outro dos seus escritores. Alexandre Dumas foi caracteristicamente francês, francês no que esse povo tem de mais autenticamente francês. O mesmo aconteceu com Coleridge Taylor, homem de cor, que encontrou na música o que ela apresenta de mais assinaladamente inglês. Gilberto Freyre insistiu em tais aproximações, mostrando que ninguém melhor do que Gonçalves Dias, na sua “Canção do exílio’, soube cantar a saudade da pátria e que a poesia de Jorge de Lima é o verbo que se fez carne, carne mestiça. Ele mostra a tremenda superioridade artística do negro brasileiro, graças à sua ternura, ao seu instinto, à sua bondade, enquanto, do lado do preto norte-americano, é a criação poética e talvez a musical crispada, agressiva, quase uma reação de defesa. Não é certamente por outra razão que quase todas as canções negras de grande sucesso nos Estados Unidos são obra de brancos, como as do admirável Stephen Foster, comparável e comparado a Schubert pela sua extraordinária riqueza melódica, autor de mais de 20 canções entre as 200 mais célebres do país. Como Verlaine e Poe, Foster acabou na bebida, aos 38 anos de idade, na mais extrema miséria. Não foi senão depois de morto que a sua obra se tornou célebre e passou a render milhões, não para ele... O que é preciso ser posto em evidência é que o subconsciente, em última análise, tem mais força e comanda, razão pela qual também o sexo é mais poderoso que as leis e as convenções. A própria reação contra os pretos, tão exagerada e absurda, é prova de que deve basear-se em motivações desse gênero.

Muito interessante, nesse sentido, é o aparecimento da escultura africana em tempos recentes. Os bronzes de Benim, conhecidos desde 1700, são dos mais extraordinários que existem, havendo diversas publicações sobre essa escultura, da qual Picasso, Braque e Vlaminck se tornaram colecionadores. A exposição realizada em Paris em 1919 despertou grande interesse e, em Nova York, encontra-se a Galeria Segy, a única do mundo que se dedica exclusivamente à arte africana. Digno de nota é o fato dessa escultura não ser visual, não copiar a natureza, sim procurar exprimi-la conceitualmente, numa expressão abstrata que a simplifica, distorce, decompõe, como fizeram os cubistas e impressionistas, dos quais representam precursores multisseculares. Também do lado da música, mormente do lado da música, é o seu sentimento extraordinário, principalmente em relação ao ritmo, no qual o negro se tem revelado inexcedível, manifestação que deve estar de acordo com o seu temperamento mais íntimo e as leis mais profundas da natureza. Hoje, começa-se a reconhecer que os pretos estão sendo corrompidos pela civilização, sobretudo pela influência do dólar e do turismo, que têm artificializado todos os elementos da sua arte. O seu ritmo é tão prodigioso, que qualquer observador, mesmo medíocre, pode dar-se conta do seu poder. Eles vibram com os instrumentos quase como se fossem estes partes do seu corpo. Os próprios garçons servem no passo cadenciado da música, executando movimentos rítmicos, não raro até acrobáticos para acompanhar a orquestra. É essencialmente pelo ritmo que eles dominam na música, pelo ritmo que é o componente mais profundo e valioso dessa arte. A harmonia é um elemento mais superficial, menos natural, fácil de se obter pelo estudo e a aprendizagem, fácil também de se sofisticar. A melodia, por sua vez, é mais questão de hábito, de moda, que varia com as convenções. Por outro lado a emoção musical corresponde a qualquer coisa de especial, não pode ser expressa por palavras, possui uma significação própria, podendo-se senti-la e gozá-la sem se pensar em coisa alguma, instintivamente. O ritmo é a força principal da música, o motivo capital do seu sucesso, decorrente certamente de um mecanismo biológico especial, que deve fazer parte da própria substância viva, embora deixe de existir em certos indivíduos. A superioridade do negro nesse particular é espantosa, como tem sido reconhecido por todos que se ocupam da questão, tão espantosa que se tem afirmado não existirem bailarinos negros medíocres. 


Estudos sobre o negro, 1958


Antônio da Silva Mello

(1886-1973)