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segunda-feira, 5 de abril de 2010

ARMANDO NOGUEIRA (1927-2010)


A alegria de um coroa

Acordou bem cedinho. Estava louco para rever a sua cidade. Abriu a janela do apartamento e deu de cara com uma colossal manhã de sol, dessas que só mesmo o Rio de Janeiro é capaz de aprontar em pleno inverno. Pois a história que agora te conto, leitor, passou-se no recente mês de agosto.  
Para não perder tempo, que as férias eram brevíssimas, o nosso amigo tomou uma xicrinha de café preto, enfiou no bolso uma pera, pra mais tarde, e saiu pelo Aterro do Flamengo, feliz da vida, de bermudas e tênis "Conga". 
Caminhava e distribuía seu contentamento entre as árvores do Aterro, boas amigas que ele já não via há dez anos, quando deixou o Rio para ir cuidar de uma fazendola no interior de Minas. 
Pelas tantas, quis tomar sol. Despiu a camisa de malha, deitou na arquibancada do campinho de futebol de salão e assim ficou um tempão, entregue ao regozijo de merecido repouso. Tamanho era o sossego que até chegou a tirar uma soneca. 
- Ei, moço! bom-dia! 
Era a voz de um dos três garotos que chegavam com uma indisfarçável secura de bola. 
- Quer fazer um racha com a gente? A gente joga dois-contra-dois. 
Deitado estava e deitado respondeu, no embalo: 
- Vamos lá, pelada é comigo mesmo! 
Resoluto, levantou-se, sacudiu as pernas e foi logo entrando no campo. Um campo de barro. O dono da bola, um menino de seus quinze anos, fez a apresentação da turma: 
- Eu sou o Marcio, esse aí é o Dico e aquele é o Leo. 
Nem esperou que o coroa se identificasse. Queria mais era começar logo o racha. 
- Olha aqui, vai ser eu e o Dico contra o senhor e o Leo. 
Pela rapidez da escalação, o coroa sentiu que devia estar entrando numa fria: o bom de bola, ali, devia ser o Dico. Discretamente, deu uma olhada e viu que o Leo não tinha a menor pinta. De qualquer modo, chamou de lado o Leo e propôs uma chave: o Leo lá na frente, ele mais atrás. Antes, porém, um teste sem aparentar outra intenção a não ser aquecer o corpo: na verdade, queria mesmo era saber se o Leo era de bola, ou não. Tocou a bola na direção do Leo para ver que bicho dava. A bola beliscou a canela do Leo. O coroa chegou a pensar em desistir. Um sujeito de 61 anos, meio barrigudo, cheio de cabelos brancos: 
- Meu Deus, o que é que estou fazendo aqui no meio desses meninos; uns meninões de quinze anos? 
O diabo é que ele já tinha aceito o desafio. Não ficava bem correr da raia. Afinal de contas, não era a primeira, nem seria a última vez que a vida metia o nosso coroa em batalhas decisivas. 
No meio do campo, o dono da bola vai cantando as regras do jogo: a partida é de cinco. Quem fizer cinco primeiro, ganha. Não vale gol direto. Não pode pegar a bola com a mão, só se já começar no gol de saída. 
E como ninguém sequer pensou em jogar no gol, a partida começa com os quatro na linha. No centro do campo de terra batida, a bola de futebol de salão, por sinal que um tanto surrada. 
A saída, lógico, é do Marcio. Marcio pro Dico, Dico pro Marcio, que tenta um drible. O coroa, vigilante, rouba a bola e contra-ataca. Procura o Leo. O Leo ficou lá atrás, paradão, sem saber pra que lado ir. O coroa então chuta do meio do campo. Gol! 
- Não vale - grita o Marcio - eu avisei ao senhor que não vale gol direto. O senhor tem que passar a bola pro Leo! Ou o Leo pro senhor! 
Gol anulado, começa tudo de novo. Saída com o Marcio. O coroa pede tempo. Cochicha uma tática no ouvido do Leo. 
Bola em jogo. O Leo dispara e vai ficar plantado bem juntinho da baliza, como pediu o coroa. 
Em dez minutos, o time do coroa já está ganhando de três a zero, três gols do Leo. O esquema funciona bem, mas o jogo é incessante, lá e cá. Agora mesmo, o Dico acaba de fazer o dele: três a um. E o Marcio delira com a reação. 
Nova saída. O coroa arranca pelo meio dos dois, parece um foguete; vai em frente e entrega, mais uma vez, embaixo dos paus para o Leo fazer o quarto gol. 
A essa altura, o coroa já passeia pelo campo, absoluto. Por sua vez, o time adversário já esta literalmente descadeirado. 
- Vai, pereba - berra o Marcio, colérico, para o Dico - Vai nele! Você não disse que o coroa não é de nada? Toma a bola dele, palhaço! 
A dissensão nas hostes inimigas é profunda. O Marcio e o Dico vão acabar saindo na porrada. Pelo menos é o que pressente o coroa, achando, por isso, que o melhor é liquidar logo essa conta. 
Vamos, então, mais que depressa ao quinto e derradeiro gol dessa inesquecível partida. Porque inesquecível, leitor, já, já saberemos. 
O Marcio faz um passe longo para o Dico. O demônio do coroa, como sempre, adivinha a jogada, corta o centro com o peito em pleno ar e, antes que a bola caia no chão, amortece na coxa direita. Da coxa, a bola escorre para o peito do pé e pronto: uma, duas, três... o homem começa uma sucessão de embaixadas; faz nove em plena corrida. Na décima, depõe a bola na linha do gol, bem em cima da linha: 
- Taí, Leo, faz o quinto e acaba logo o jogo. 
- O Marcio, uma fera, vai apanhar a bola e nem volta para dizer até logo. O Dico sai de fininho, mal dá um tchau. O Leo, não, o Leo dá um abraço legal no companheiro de time. 
O coroa senta de novo na arquibancada, tira do bolso a pera, dá uma mordida triunfal e fica ruminando, em silêncio, o bendito fruto de uma bela vitória. 
Os três meninos foram embora sem saber que deram uma certa alegria ao coroa Nilton Santos, também chamado "A Enciclopédia do Futebol".

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