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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Gonçalo Ivo em 9-I-2021


Giovanni Bellini, Alegoria sacra


                                                          “Logo percebi o grito melancólico de uma

                                                            ave de rapina, instaurou-se o silêncio do

                                                            eterno começo, o mundo como ele sempre

                                                            foi, no estado de não ser »

                                                                                                   Carl Gustav Jung.

 

A imobilidade é a gênese de tudo, e a partir dessa ideia, percorro uma vereda de pensamentos tortuosos que me levam a Giovanni Bellini, (1430 – 1516). Como num espelho, experimento, em Alegoria sacra, o físico e o imaterial, o estático e o que de forma lenta se move, como a bruma úmida da manhã. Essa pintura, provavelmente executada entre 1490 e 1500, é, para mim, uma das mais intrigantes, potentes e relevantes obras do Cinquecento. Nela, o espaço, erguido com absoluto rigor de pureza e secreta geometria euclidiana, como numa villa de Andrea Palladio, no Broadway Boogie Woogie de Piet Mondrian ou na extensa série Homenagem ao quadrado de Josef Albers, evidencia um delicado tonalismo, em que sombras e enigmáticas luzes brandas carregam um doce colorido e fazem nossas retinas estarem vigilantes, como janelas abertas a transpassar umbrais capazes de conduzir-nos ao sonho.

Bellini nos oferece um lugar onde jamais estaremos. Vivemos o mundo imaginário, um teatro de formas e cores desse solitário artesão a forjar o eterno. Vagamos entre os inúmeros planos da diáfana paisagem, onde o todo jamais será corrompido.

As figuras idealizadas por esse artista veneziano ora flutuam, ora estão em repouso, petrificadas. Em distintos momentos, percebo lapsos, como se eles professassem o mistério da sacra conversação. Espalham o indivisível e ocupam lugares no campo pictórico, como se fossem peças de xadrez, no metafórico, geométrico e marmóreo piso dessa varanda mágica. Estarão a arguir  o terrestre, o mito, o sacro, a gravidade e o ilusório mistério da levitação?

Há uma atmosfera imaterial entre a varanda, o espelho d’água subjacente, os pedregosos montes e os personagens. Intuímos o etéreo na paisagem, como se no passado pudéssemos prenunciar o requinte das últimas pinturas de Paul Cézanne em Aix-en-Provence. O colorido é próximo ao do mestre francês;  nele, sentimos a umidade, a luz que se irradia na refratária atmosfera, e chegamos a ser tocados pela leve corrente de ar vinda do golfo de Marseille. É notório que o artista de Aix não admirava os primitivos italianos, como Masaccio, Giotto e Duccio. Preferia uma pintura mais espacial, como as de Veronese, Ticiano e Tiepolo.

Cézanne estava mais próximo de uma arte que pudesse representar a atmosfera em sutis, refinadas e sucessivas membranas. Afirmava que entre o espectador  e a paisagem havia um percurso de planos e transparências a serem percorridos pelo olhar.

Uma pequena árvore frutífera deslocada do centro da varanda, rodeada por quatro crianças, anima esta enigmática metáfora da árvore da vida.  São Sebastião, com duas flechas ortogonais a penetrar seu corpo, jaz imóvel. Toda a composição é um mosaico que reflete sobre o agora e o eterno.

O intrincado jogo de xadrez que emana da Alegoria sacra é mais do que o sonho perfeito. Interpreto nele os mundos existentes em ambos os lados de uma fina pele que divide o divino, o sublime e a felicidade do lugar da sombra onde o esquecimento sempre triunfa.

 

 

Vargem Grande, 9 de janeiro de 2021.


ORIGINALMENTE PUBLICADO 

NA REVISTA DASARTES

EDIÇÃO NÚMERO 103

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