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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Gonçalo Ivo na Revista DASartes





O TERCEIRO DIA

“No te escondas, que ya te has puesto viejo.

Que a Natura obedezcas te aconsejo,

Que el tiempo te robó tu fortaleza.

…Está marcado tu destino, y si tarda treinta

años o quarenta, te ha de parecer mucho,

aunque no es nada.”

                                                                                 Petrarca, Cancionero. 

                                                                                   Versión de Ángel Crespo

 

Veneza, terça-feira, 23 de março de 1993

Enquanto o trem avança em direção a Pádua, eu penso nas viagens que fiz pelo Nordeste do Brasil, nas construções simples e limpas, adornadas por uma geometria sumária, nas casas brancas e capelas pequeninas com seus cruzeiros na cumeeira iluminados. O dia de sol radiante na Itália é, para mim, o mesmo sob as cidades esquecidas na beira da estrada que corta a Bahia em sua latitude. Meu reencontro com a pintura da Cappela degli Scrovegni é também uma volta para casa. Os afrescos de Giotto mimetizam as paisagens pedregosas do sertão, o céu muito azul, os rebanhos de cabras pastando e a vegetação esquálida. O colorido resplandece em inúmeros dourados, verdes-esmeraldas, carmins e azuis, como nos dias festeiros de procissão. Em O sacrifício de Joaquim, Deus se manifesta em mistério glorioso, por meio de uma minúscula mão suspensa no ar.

Vargem Grande, Sítio São João, outubro de 1999.

O TERCEIRO DIA

Revelo algumas árvores íntimas. Para mim, elas são a ponte entre o céu e a terra. Suas copas sustentam o firmamento, suas raízes profundas são as fundações de uma grande arquitetura. Antes mesmo de criar o sol, a lua e as estrelas, Deus, no terceiro dia, deu vida às árvores. E nos pôs a caminhar entre elas.

Havia no pomar, ao lado do meu ateliê em Teresópolis, uma velha pereira morta. Não deixei que a cortassem. Seu tronco e galhos retorcidos eram o abrigo de pássaros, parasitas e fungos. Durante o dia, essa árvore aderia-se à paisagem clara. Nas noites limpas e frias de inverno, seu desenho bruxuleante surgia como uma grande onda deslizando sobre o fundo azul do mar. Seus galhos, secos e brancos como ossos, apontavam as estrelas que deambulavam vagarosamente.

Mesmo morta, como uma pedra, essa árvore estava sempre em movimento. Se a imaginava imóvel, havia nela o deslocamento de sua forma, que se lançava como uma elipse ascendente. Agora, ela reaparece como uma sombra em minha pintura. É a árvore que hoje se oculta e se revela entre tantas outras árvores.

PS: Essas são reminiscências de meus diários escritos nas últimas décadas.

Gonçalo Ivo

Madri, 12 de outubro de 2021.

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