Novo Gulliver
Há lembranças da meninice que jamais se apagam do cérebro adulto, mesmo quando esse receptador de impressões não consegue, por fraqueza senil, reter as da véspera. Lembro-me de um cromo de vivas cores, visto aos cinco anos, reclame da linha de coser Coat’s e não me lembro dos desenhos alegóricos a Cristo publicados nos jornais na última sexta-feira santa. Representava esse cromo um gigante estirado à borda do mar e enleado de mil fios de linha Coat’s; em redor formigava a legião dos pigmeus amarradores. De mãos à cintura, muito contentezinhos, confundiam a imobilidade do gigante, conseqüência do bom sono que dormia, com a imobilidade da mosca enleada por mil voltas da teia de aranha.
Mais tarde, quando chegou o belo tempo dos livros de Grimn, Andersen, Ségur e outros maravilhadores da imaginação infantil travei conhecimento com Jonathan Swift e tive a explicação do meu cromo de Coat. Representava Gulliver no país de Lilipute, amarrado durante o sono de mil cordas liliputianas. Mas Gulliver acordou, estirou os músculos e com um simples espreguiçamento rompeu, com grande assombro dos locais, toda a amarrilhoca que o prendia.
Quem trepa a um Corcovado imaginário e de lá procura ver em conjunto o Brasil, espanta-se da sua atitude. É um gigante deitado e amarrado. Mas não dorme; ofega com a respiração opressa e faz descoordenados movimentos convulsivos para romper o cordame enleador.
O Gulliver sul-americano principiou a ser amarrado pelos portugueses, quando Portugal descobriu que em suas veias circulava ouro, o sangue amarelo; e desd’aí até hoje os homens do cipó, vulgo homens de governo, outra coisa não fizeram, federal, estadual, municipalmente, senão dobrar cipós, cordas e fios de arame sobre seus membros para que, a salvo de pontapés, possam sugá-lo com as suas trombinhas de percevejo.
Portugal só organizou uma coisa no Brasil-colônia: o Fisco, isto é, o sistema de cordas que amarram para que a tromba percevejante sugue sem embaraços. Quem lê as cartas régias e mais literatura metropolitana enche-se de assombro diante do maquiávelico engenho luso na criação de cordas. Cordas trançadas de dois, de três, de quatro, de dez; cordas de cânhamo, de crina, de tucum, de tripa; cordas estrangulatórias de espremer o sangue amarelo e cordas de enforcar.
E assim foi até que um português de gênio impulsivo se condoeu da triste sorte do gigante e cortou o cordão umbilical que o prendia à Metrópole, corda mestra, corda mãe de toda a linda coleção de cordas fiscais secundárias. E o gigante respirou e viveu feliz, sobretudo no meio século de “compreensão” que o magnânimo filho do primeiro Pedro houve por bem outorgar-lhe.
Mas não há felicidade que dure mais de meio século. Uns bacharéis formados pela universidade da Lua e uns generais tentados pela serpente da traição implicaram-se com a velhice do príncipe magnânimo, acusaram-no de saber quatorze línguas, de assistir a exames de meninos, de boicotar com um célebre lápis azul os maus juízes, em vez de fazer as coisas interessantes que, quatrienalmente postos no lugar do velho sábio, eles, bacharéis e generais, fariam. E deportaram-no; meteram-no a bordo dum mau navio e:
— Vai ninar os netos de Victor Hugo. Tu não entendes de lidar com o gigante.
O bom velho partiu e os bacharéis e generais, a olharem-se uns para outros, sorridentes e gozosos, tomaram conta da casa.
Não diremos aqui das conseqüências inúmeras da mudança; basta que as sintamos todos os dias como o suplício da gota d’água; diremos somente da coisa capital que a república fez, faz e continuará a fazer. Estomagada com a liberdade de movimentos do bom gigante, resolveu amarrá-lo de novo. Foi às cartas régias da Metrópole e ressuscitou uma a uma todas as cordas e cipós fiscais rompidos pelos Pedros; recompô-las e começou a enlear pachorrentamente o pobre Gulliver. Amarra os braços, amarra as pernas, amarra as mãos; amarra, amordaça a boca para que não grite — e foi-se a Constituição; amarra, venda os olhos para que não veja — e lá se foi a imprensa.
Sobre o corpo de Gulliver desceram todos os arrochos. Não bastaram os cipós e cordas de invenção lusa; importaram-se cabos de aço, torniquetes complicadíssimos, borzeguins medievais, remodelados pela engenhosidade moderna. O Fisco tornou-se o objetivo supremo da república, a meta de todas as suas altas cogitações. Anualmente se reúnem, durante meses, centenas de técnicos cuja função é uma só: inventar novas torturas fiscais, novos aparelhos de sarjar as carnes e extorquir sangue à vítima.
Gulliver estertora. Todas as suas forças emprega-as em defender-se das cordas e ventosas que o Congresso torce e engenha. O Santo Ofício virou um marquês de Sade repartido em bancadas; não se contenta em tirar sangue, há que tirá-lo da maneira mais dolorosa, da maneira mais incômoda, da maneira mais lesiva ao organismo do bom gigante. A invenção do novo borzeguim — imposto da renda, excede a tudo quanto saiu da cabeça dos inquisidores: a vítima ignora o que tem de pagar e se não paga com exatidão incide em pena de confisco! E se em desespero de causa pede ao Fisco que lhe explique o mistério, que lhe dê a chave vertical e horizontal do quebra-cabeças, o marquês de Sade sorri e responde, diagonalmente:
— Pague com cheque cruzado, e explica com grande ironia de detalhes como se toma de uma régua, duma pena molhada em boa tinta e como se cruza um cheque.
Não há criatura neste país que não confesse um desânimo infinito. As energias do homem que trabalha e produz despendem-se por três quartos na luta contra a escolástica e o sadismo da cipoeira fiscal; sobra-lhe uma pequena parte para dedicar à sua indústria. Até esforço muscular dos dedos o sadismo do fisco lhe rouba. Pela manhã, ao acender o primeiro cigarro, tem que gastar o esforço de duas unhadas para romper o selo com que o fisco tranca as caixas de fósforos e os maços de cigarro.
Este engenhoso sistema de tortura tem em vista uma coisa só: permitir que sobre o corpo do gigante a vermina duma parasitalha infinita engorde em dolce far niente, como o carrapato engorda no couro do boi pesteado.
Vermina ininteligente! Consultasse ela os carrapatos e receberia deles um conselho salutar:
— É perigoso levar a sucção a grau extremo; morre o boi, e com ele a parasitalha.
Será que nem o instinto da conservação própria consiga meter um raio de inteligência nos miolos do triatoma megista?
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