Uma amiga minha, de Belo Horizonte, veio ministrar aulas em Brasília, durante um fim-de-semana. Fomos jantar juntas e ela me perguntou, à queima-roupa, se podia dizer uma heresia. “Eu acho Brasília uma cidade feia, muito feia”, sussurrou. Ri da observação, não nos víamos há tempos e eu a deixaria dizer o que quisesse. Os minutos para conversar eram poucos, e não quis gastá-los expondo o meu espanto. Teria ela visto de perto, com calma, uma superquadra? Seus olhos teriam se fixado nesses imensos jardins muito verdes, cobertos de espatódeas e outras árvores? Reparara nos ipês, nas mangueiras dentro das quadras e nos eixos? Enquanto comentávamos outros assuntos, guardei essas perguntas para mim, com receio de quebrar a harmonia de tão raro encontro.
Dias depois dei de cara com outra amiga, que não via há mais de vinte anos, enquanto admirava uma cristaleira, na feira de antiguidades. Achei-a bem disposta, com ar jovial. Diplomata, trabalhou muitos anos fora do Brasil, e seu último posto fora em Paris, onde morou num amplo apartamento às margens do Sena. Contou-me que, tendo se aposentado há alguns anos, escolhera Brasília para morar, adquirindo aqui o seu apartamento. Voltei para casa pensando na escolha, no caso digna de nota, feita por alguém que viveu em tantas cidades lindas, como Bruxelas, Paris, Pequim, só para citar algumas.
Opiniões tão diferentes, emitidas por duas mulheres cultas e sensíveis, fizeram-me refletir. Como na música de Caetano Veloso (creio que se chama “Clarice”), fiquei pensando que mistério tem Brasília, que, mesmo quarentona, ainda é capaz de chocar, espantar, impressionar, encantar, como qualquer adolescente. E, mesmo que seus bem cuidados gramados e algumas de suas árvores revelem, a cada dia, que também para ela os anos passam, por que continua a conservar, pelo menos para aqueles que a visitam pela primeira vez, o ar de recém-nascida?
Ouve-se de tudo, sobre Brasília. Os lugares-comuns, então, esses parecem não mudar nunca: cidade sem esquinas, cidade sem vida, cidade da solidão. Há uma extensa lista de idéias e adjetivos a ela associados: ilha da fantasia, cidade do poder, capital da corrupção, lugar do tédio e do vazio, onde os olhos não encontram variações, sempre vendo prédios iguais, ruas iguais, frias, numeradas. Há quem diga que seu principal defeito é a falta do mar: “ah, se fosse no litoral até que dava para agüentar essa mesmice”, disse-me certa vez uma vendedora de um shopping. Seu povo, então, é chamado de tudo, antipático, arrogante, frio como iceberg. Alguns chegam a dizer que esta é a cidade do “sabe com quem está falando?”, do “jeitinho” e do apadrinhamento, em todas as suas tonalidades.
Pobre Brasília, quantos atropelos! Seu traçado cartesiano não pretendia separar, e sim unir as pessoas. A mesma amiga que a tachou de “feia” acha-a “socialista demais, os prédios praticamente da mesma altura e do mesmo tamanho”. O que ela não reparou, o que muitos não percebem, é que as semelhanças não são tão grandes assim. Tudo pode parecer igual, à primeira vista, mas há que estar atento para descobrir as diferenças, é preciso perceber as sutilezas. E, sobretudo, parar de comparar, amar a cidade como ela é, diferente mesmo, por natureza. Tão diferente que na minha quadra, como em outras, há mesinhas na área comum, debaixo de árvores, onde se reúnem, à tardinha, grupos de idosos jogando damas, cartas, pondo em dia as novidades. Em que metrópole encontramos algo assim, um divertimento de graça, na porta de casa? Que grandes cidades, pelo menos no Brasil, oferecem esses espaços enormes, abertos, para que façam deles o que for mais conveniente e agradável? Isso sem contar as flores, que dão à cidade feições de perene jardim, o ar despoluído, o seu fantástico pôr-do-sol e a beleza do Lago Paranoá.
Para quem a chama de fria, Brasília apenas ergue os ombros e sorri, com a autoridade de quem, há mais de quatro décadas, vem acolhendo pessoas de todas as regiões brasileiras, de todos os países, sem distinção. Ninguém é considerado de fora, embora só recentemente os nascidos em Brasília sejam maioria, nas salas de aulas das universidades.
A fim de saber o que sentiam, em relação à terra natal, e coletar opiniões sobre a cidade, distribuí aos meus alunos da Faculdade de Comunicação da UnB cópias da crônica “Brasília”, escrita por Clarice Lispector em duas épocas distintas: a primeira parte em 1962, logo após a criação, e a segunda em 1974, depois de nova visita da autora à capital. Como toda a sua obra, trata-se de um texto deslumbrante, no qual a sensitiva Clarice já anunciava tudo o que se disse posteriormente sobre a cidade, na sua linguagem ímpar, que não se assemelha à de mais ninguém. Foi uma experiência interessantíssima, especialmente para mim, que nasci no interior de Minas e morei em vários lugares. O texto agradou em cheio e senti que havia acertado na escolha.O seu frescor (parece ter sido escrito ontem) suscitou discussões acaloradas, que tomaram todo o horário da aula.
Clarice perguntou “como será quem nasce em Brasília quando crescer e virar homem?” A esse respeito, lembro-me que um dos alunos disse estar triste porque passara seus dezoito anos morando numa superquadra e que, finalmente, a família iria realizar o sonho conjunto de morar em uma casa. Como no interior, seus amigos eram os vizinhos de bloco e sentia deixá-los, após tão longa convivência. Compreendi logo que, para ele, sua superquadra, aparentemente tão igual às demais, era única, inconfundível. Suas experiências lhe deram “humanidade” e libertaram-na da sua numeração. Agora, ela teria asas, pois iria com ele onde estivesse.
Segundo a autora, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer “não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério”. Essas e outras afirmativas, paradoxais e contraditórias, fascinaram e revoltaram os estudantes, como é comum acontecer até hoje, quando se trata da escritura de Clarice Lispector.
A impressão que tive, ao término da discussão, foi a de que, embora tenham um sotaque próprio, claramente brasiliense, que já pode ser reconhecido, os nascidos em Brasília, ao contrário do que muitos pensam, são tão comuns e tão humanos como os de qualquer lugar. E não poderia ser de outra maneira, diriam os pesquisadores. Sim, a rigor não poderia, mas durante anos houve uma grande especulação e até mesmo uma forte curiosidade para se saber como seriam, adultas, as crianças nascidas nas superquadras identificadas por números, sem nomes tradicionais, nos edifícios da mesma altura, vivendo, como disse Clarice, nessa “aridez luminosa e cheia de estrelas”.
Não, não é uma cidade perfeita (e nenhuma o é): há problemas difíceis de resolver, os índices de criminalidade são preocupantes, o trânsito piorou muito nos últimos anos, com o crescimento da população, que superou todas as expectativas. Mas ainda assim, por suas qualidades, pelo que tem de especial e único, acredito, como Clarice, que “Brasília é um primeiro lugar no vestibular”.
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