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domingo, 8 de março de 2015

PATRICIA AMARAL



deixo aosxamigos minha reflexão sobre o conto de Voltaire , entitulado "Memnom ou a sensatez humana" e a nova produção cinematográfica de Alejandro Gonzáles Iñarritu, " Birdman ou A Inesperada Virtude da ignorancia".. 

Memnom ou a sensatez humana

Voltaire

Um dia Memnon concebeu o projeto insensato de ser completamente sensato. Essa loucura já passou pelo menos uma vez pela cabeça da maioria dos homens. Memnon disse para si mesmo: "Para ser muito sensato, e conseqüentemente muito feliz, basta não ter paixões; e todos sabem que nada é mais fácil. Em primeiro lugar, jamais amarei qualquer mulher, pois, ao ver uma beleza perfeita, direi a mim mesmo: um dia essas faces estarão cobertas de rugas, esses belos olhos orlados de vermelho, esse pescoço redondo ficará vulgar e pendente, e essa bela cabeça, calva. Ora, basta vê-la no presente com os olhos que a verei então para sua cabeça não fazer com que eu perca a minha".
"Em segundo lugar, estarei sempre sóbrio; por mais que eu seja tentado pela boa mesa, por vinhos deliciosos, pela sedução da vida social, basta eu imaginar as seqüelas dos ex­cessos, a cabeça pesada, o estômago embrulhado, a perda do raciocínio, da saúde e de tempo para que eu coma apenas o necessário minha saúde será sempre equilibrada, minhas idéias, sempre límpidas e luminosas. Tudo isso é tão fácil que não há mérito nenhum em consegui-lo".
"Depois", dizia Memnon, "devo pensar um pouco em meu dinheiro; tenho desejos moderados; meus bens estão guardados com segurança junto ao recebedor-geral das finanças de Nínive; tenho com o que viver independentemente e esse é o maior dos bens. Jamais terei a necessidade cruel de apelar para a corte; não invejarei ninguém e ninguém me invejará. Isso também é muito fácil. Tenho amigos", continuou, "conseguirei conservá-los, pois nada terão a disputar comigo. Nunca terei caprichos com eles, nem eles comigo, tudo muito simples.
Após ter elaborado seu pequeno plano de sensatez em seu quarto, Memnon foi à janela. Viu duas mulheres que passeavam sob os plátanos ao lado de sua casa. Uma era velha e parecia não estar pensando em nada; a outra era jovem e bonita e parecia muito preocupada. Suspirava, chorava, o que a tomava ainda mais graciosa. Nosso sábio ficou tocado, não pela beleza da dama (tinha certeza absoluta de não sentir tal fraqueza), mas pela aflição que a consumia. Desceu e abordou a jovem ninivita com o intuito de consolá-la com sensatez. Essa bela pessoa contou-lhe, com um ar dos mais ingênuos e tocantes, todo o mal que lhe infligia um tio que não tinha; com que artifícios arrancara-lhe um bem que jamais possuíra, e tudo o que tinha a temer de sua violência. "O senhor parece-me tão bom conselheiro", disse-lhe ela, "que se tivesse a condescendência de ir até a minha casa examinar meus negócios, estou certa de que me tiraria dos cruéis apuros em que me encon­tro." Memnon não hesitou em segui-la para examinar seus negócios com sensatez e aconselhá-la bem.
A dama aflita levou-o para um quarto perfumado e convidou-o com polidez a sentar-se com ela num amplo sofá, onde ficaram, um diante do outro, as pernas cruzadas. A dama falou baixando os olhos dos quais por vezes escapavam lágrimas e que, ao erguerem-se, encontravam sempre o olhar do sensato Memnon. Suas palavras eram cheias de uma ternura que aumentava a cada vez que se olhavam. Memnon levava seu caso extremamente a sério e sentia, a cada momento que passava, mais vontade de ajudar uma pessoa tão honesta e tão infeliz. No calor da conversa, insensivelmente, deixaram de estar um diante do outro. As pernas descruzaram-se. Memnon aconselhou-a de tão perto e deu-lhe conselhos tão ternos que já não conseguiam, nem um nem outro, falar de negócios e já não sabiam mais em que parte da conversa haviam parado.
Nesse momento chega o tio, como era de se esperar: estava armado da cabeça aos pés; e a primeira coisa que disse foi que ia matar, com todo direito, o sensato Memnon e sua sobrinha; antes, porém, deixou escapar que podia perdoá-los em troca de muito dinheiro. Memnon foi obrigado a entregar-lhe tudo o que tinha. Naquele tempo, as pessoas podiam considerar-se felizes por escaparem por tão pouco; a América ainda não havia sido descoberta, e as damas aflitas não eram, nem de longe, tão perigosas quanto hoje em dia.
Envergonhado e desesperado, Memnon voltou para casa, onde encontrou um bilhete que o convidava para jantar com alguns de seus amigos íntimos. "Se eu ficar sozinho aqui em minha casa", disse, "não conseguirei tirar minha triste aventura da cabeça e não comerei; ficarei doente: é melhor ir fazer uma refeição frugal com meus amigos ínti­mos. Na doçura de sua companhia, esquecerei a bobagem que fiz esta manhã." Vai ao encontro deles; todos o acham um tanto aflito. Fazem com que beba para dissipar sua tristeza. Beber moderadamente um pouco de vinho é um remédio para a alma e o corpo. É isso o que o sensato Memnon acha; e embriaga-se. Propõem-lhe um jogo após a refeição. Um jogo disciplinado entre amigos é um passatempo honesto. Joga; perde todo o dinheiro que trazia consigo e ainda aposta quatro vezes essa quantia. Inicia-se uma briga por causa do jogo, todos inflamam-se: um de seus amigos íntimos joga-lhe um copo de dados na cabeça e fura-lhe um olho. O sensato Memnon é levado para casa embriagado, sem dinheiro e com um olho a menos.
Assim que passa a bebedeira, com as idéias mais claras, ele manda seu criado buscar dinheiro junto ao recebedor-geral das finanças de Nínive para pagar o que devia a seus amigos íntimos: dizem-lhe que, naquela manhã, seu devedor cometera falência fraudulenta, o que alarmou muita gente. Indignado, Memnon vai à corte, emplastro no olho e petição na mão, pedir justiça ao rei contra o falido. Num salão, encontra várias damas que, com um ar natural, carregavam crinolinas de 24 pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia um pouco, diz, olhando-o com desprezo: "Ah que horror”. Uma outra, que o conhecia um pouco mais, diz "Boa tarde, senhor Memnon; realmente, senhor Memnon: estou muito contente em vê-lo; a propósito, senhor Memnon, por que o senhor perdeu um olho?". E afastou-se sem aguardar a resposta. Memnon escondeu-se num canto e esperou o momento propício para atirar-se aos pés do monarca. Chegou o momento. Beijou três vezes o chão e apresentou sua petição. Sua graciosa Majestade recebeu muito bem sua queixa e passou o caso para um de seus sátrapas. O sátrapa leva Memnon para um canto e diz, com um ar altivo, um tom amargo de troça: "Acho bem engraçado um caolho dirigir-se ao rei quando deveria vir diretamente a mim, e ainda mais engraçado que ouse pedir justiça contra um honesto falido que honro com a minha proteção, pois é sobrinho de uma camareira de minha amante. Meu amigo, se quer conservar o olho que lhe resta, esqueça esse caso".
Tendo renunciado naquela manhã às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo, a qualquer querela e sobretudo à corte, antes de a noite cair, Memnon fora enganado e roubado por uma bela dama, embriagara-se, jogara, brigara, perdera um olho e estivera na corte, onde dele zombaram.
Petrificado de estupor e desolado, vai embora, com a morte na alma. Quer voltar para casa; mas ali encontra meirinhos que retiram seus móveis a pedido dos credores. Cai quase desmaiado sob um plátano, onde encontra a bela dama da manhã que passeia com seu querido tio e que explode numa gargalhada ao ver Memnon com seu emplastro. Chega a noite. Memnon deita-se sobre a palha junto às paredes de sua casa. Está ardendo em febre; adormece com a crise, e um espírito celeste aparece-lhe em sonho.
Era resplandecente de luz. Tinha seis belas asas, mas não tinha nem pés, nem cabeça, nem cauda e não parecia com nada. "Quem é você?", perguntou-lhe Memnon. "Seu anjo da guarda", respondeu-lhe o outro. "Devolva-me então meu olho, minha saúde, meus bens, minha sensatez", diz Mem­non, que lhe conta, a seguir, como havia perdido tudo aqui­lo em um dia. "São aventuras que nunca acontecem no mundo que habitamos", diz o anjo. "E em que mundo você mora?", diz o homem aflito. - "Minha pátria", respondeu, "fica a quinhentos milhões de léguas do sol, numa pequena estrela junto a Sírius, que você vê daqui." "Belo país!", diz Memnon; "O quê? Nesse lugar não há devassas que enga­nam um pobre homem, amigos íntimos que ganham seu di­nheiro e furam-lhe o olho, falidos ou sátrapas que zombam de você e recusam-lhe justiça?". "Não", diz o habitante da estrela, "nada disso. Nunca somos enganados pelas mulheres, porque não há mulheres; nunca nos excedemos na mesa, porque não comemos; não temos falidos, porque não há em nosso país nem ouro, nem prata; não podem nos furar os olhos, porque não temos corpos como os seus; e os sátrapas não podem cometer injustiças, pois, em nossa pequena estrela, todos são iguais."
Então Memnon diz: "Meu senhor, sem mulheres e sem jantares, com que passam o tempo?". "A velar os outros globos que nos são confiados; e venho para consolá-lo, diz o gênio. "Que desgraça! Por que não veio na noite passada para evitar que eu cometesse tantas loucuras?", continua Memnon. "Estava com Assan, seu irmão mais velho", diz o ser celeste. "O estado dele é ainda mais lamentável que o seu. Sua graciosa Majestade, o rei das Índias, na corte do qual tem a honra de encontrar-se, mandou furar seus dois olhos por uma pequena indiscrição, e atualmente ele acha-se num calabouço, ferros nos pés e nas mãos." "Não vejo qual é a vantagem de se ter um anjo da guarda na família quando, dos dois irmãos, um está caolho, o outro cego, um deitado na palha, o outro na prisão", diz Memnon. "Sua sorte mudará , retoma o animal da estrela. “É verdade que continuará sempre caolho; mas, à parte esse problema, será bvastante feliz, desde que não conceba mais o projeto estúpido de ser completamene sensato”. “Então é impossível alcançar esse intento?”, exclama Memnon, suspirando. “Tão impossível”, replica o outro, “quanto ser completamente hábil, completamente forte , completamente poderoso, completamente feliz. Nós mesmos estamos longe disso. Há um globo ode é possível encontrar tudo isso; mas nos cem bilhões de mundos dispersos pela extensão do espaço, tudo acontece por etapas. Tem-se menos sabedoria e prazer no segundo do que no primeiro, menos no terceiro do que no segundo e assim por diante até o último, onde todos são completamente loucos.” “Temo”, diz Memnom, “que nosso pequeno globo terráqueo seja precisamente um desses hospícios do universo dos quais você me concede a honra de falar-me.” “Não totalmente, mas quase: é preciso que tudo esteja em seu devido”. “Mas então certos poetas, certos filósofos estão completamente errados em afirmar que tudo está correto?”, disse Memnom. “Estão muito certos, diz o filósofo lá de cima, “considerando a organização de todo o universo.” “Ah!”, replicou o pobre Memnon “Só acreditarei nisso quando não for mais caolho”

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