Foto: Denise Andrade |
26/11/2015
Pedro Mastrobuono
O Arte Conceituando entrevistou por e-mail o advogado especialista em direitos autorais Pedro Mastrobuono. Além de advogado e grande apaixonado pelas artes, Pedro Mastrobuono é fundador do Instituto Volpi de Arte Moderna e membro efetivo da Comissão de Direito às Artes, além de outras três Comissões Especiais da OAB, onde atua fortemente na proteção do patrimônio e meio ambiente cultural.A ele fizemos perguntas sobre o Brasil e sua legislação no que tange a arte, sobre sua trajetória e o Instituto Volpi.
Arte Conceituando: Imaginamos que você tenha crescido próximo às artes, devido também ao seu pai. A escolha pelo direito, e pela especialização nas questões de direito autoral, se deu como reflexo dessa influência?
Pedro Mastruobono: Desde a infância, sempre fui muito próximo a meu pai. Somos grandes amigos. Assim, pude desfrutar da amizade que ele nutriu com diversos artistas e intelectuais. Quando meu sobrenome é citado, quase todos, de modo automático, lembram-se da profunda e duradora amizade que meu pai teve com o pintor Alfredo Volpi, mas o leque de artistas era muito mais amplo. Conheci e convivi com diversos pintores, como José Antonio da Silva, Rubem Valentim, Antônio Henrique Amaral, entre outros. Meu pai era amigo pessoal do pintor equatoriano Oswaldo Guayasamin, frequentando seu ateliê em Quito. Convivemos com poetas, como Ledo Ivo, membro da Academia Brasileira de Letras. Com marchands, galeristas e colecionadores que hoje são referências. Por exemplo, o colecionador Ladi Biezus é meu padrinho de Batismo, sendo que cresci ouvindo e participando de conversas com Domingos Giobbi, Theon Spanudis, Pietro Maria Bardi, Jean Boghici e por aí afora. Mas, por incrível que pareça, foi meu avô paterno Miguel quem me convenceu a deixar o curso de engenharia para me tornar advogado. Meu avô, que morava no apartamento literalmente debaixo ao meu, era completamente apaixonado pelo Direito. Sou advogado por influência dele, já que por meu pai eu teria seguido seus passos e continuado no curso de engenharia. A influência é inegável, sem dúvida, mas não sou advogado em decorrência direta disso.
Arte Conceituando: Legalmente, qualquer obra pode ser declarada de interesse público (após decreto de 2013), correto? Como conciliar o interesse público e privado, em um país como o Brasil, onde existe uma promiscuidade entre as esferas públicas e privadas?
Pedro Mastruobono: A situação é bem esta sim, pois o decreto presidencial não foi revogado. Há, ainda, uma generalizada dificuldade de entender a importância do colecionismo na eficácia da proteção à produção cultural. Nos séculos XV e XVI, a Igreja Católica era a principal mecenas, incentivadora e mantenedora de artistas. Já nos tempos atuais, tal responsabilidade foi pulverizada. Hoje, são os colecionadores privados, frequentadores de ateliês, que absorvem toda a produção dos artistas plásticos contemporâneos. Lembremos que na década de 1970, Alfredo Volpi era um artista contemporâneo e sua produção era sim viabilizada apenas pelo dinheiro privado. É preciso entender que não há políticas públicas de sustentação para artistas. Deste modo, são os colecionadores privados que apostam seu dinheiro em objetos de arte, no mais das vezes ainda não consagrados. É daí que vem a sustentação econômica dos artistas. A verdade nua e crua, é que os destinos possíveis de uma obra de arte são apenas dois: museu ou antiquário. Muito daquilo que um colecionador compra, por mais experiente que seu olhar seja, não se consagrará jamais. Ora, depois que o artista conseguiu sobreviver e produziu suas peças lastreadas no capital privado, depois que a obra artística ganhou relevância e experimentou valorização econômica, vem o governo e declara um bem privado de interesse público?
Não estou convencido que vivamos em um Estado de Direito, tampouco em uma república de verdade. Vivemos sim em uma oligarquia, onde as leis não valem assim tanto para os integrantes do Governo e seus apadrinhados. Estamos em um país onde até mesmo leis de época do Primeiro Império são alegadas para se conseguir a apreensão de peças que nunca foram roubadas ou furtadas. “Musealizadas” na marra. Mas a Constituição Federal não é republicana? O Estado hoje não é laico? Promiscuidade sim, quando interessa... Vale a pena refletir: E políticas públicas de aquisições para nossos museus, nem pensar?
Arte Conceituando: Você acredita que a legislação brasileira é capacitada para lidar com as questões artísticas?
Pedro Mastruobono: Acredito que legislação devesse refletir o anseio da sociedade, não apenas as ideias unilaterais de pessoas que se sentaram nos tronos governamentais. É preciso, antes de sair por aí, baixando decretos, portarias e aparelhando a máquina estatal, refletir, em conjunto com a sociedade, que modelo gostaríamos de adotar. A gênese de museus franceses, como o Louvre por exemplo, passa pela Revolução Francesa, pela decapitação dos monarcas e apreensão não só do palácio, mas de tudo aquilo que já havia lá dentro. Despois vieram as guerras napoleônicas e os respectivos butins das campanhas militares. Muito sangue foi derramado para se rechear e manter tal museu. O mesmo raciocínio serve para o admirado Hermitage.
Mas este é o único modelo existe? Será sempre preciso espoliar, derramar sangue? Ora, pelo que me consta, USA é um país tão jovem quanto nosso. Lá não havia absolutamente nada para ser exibido e hoje sobram museus importantíssimos em abundância. Como conseguiram tal façanha? Com politicas públicas sérias de incentivo fiscal. Lá os colecionadores, por força destes benefícios legais, doam constantemente obras importantes, abrem fundações e instituições culturais. Quantos locais, que hoje atraem enorme visitação publica nos USA, não eram antes apenas coleções privadas? Por aqui, falta informação, especialmente visão e coerência.
Arte Conceituando: Conte-nos um pouco sobre a fundação do Instituto Volpi de Arte Moderna?
Pedro Mastruobono: Alfredo Volpi começou a catalogar sua própria obra artística ainda em vida. No ano de 1978, no MASP, houve um primeiro esforço de catalogação, onde o próprio pintor reconhecia a autenticidade de cada peça, com a participação direta de Pietro Maria Bardi e de meu pai. Pouco mais tarde, Volpi concedeu poderes de catalogação, por escritura pública e comprometendo seus sucessores, para que meu pai continuasse a catalogar seus quadros, convencido que tal processo deveria prosseguir, protegendo assim sua obra artística de contrafações, cópias e fraudes. Com base neste documento, submetemos ao Judiciário a constituição do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, mais conhecido simplesmente por Instituto Volpi. Os Estatutos Sociais e demais documentos constitutivos foram, então, aprovados. Hoje, o Instituto Volpi tem o dever legal de zelar pela proteção e divulgação da memória e da obra artística do pintor. Já lançamos sua biografia, contando toda a trajetória do homem Alfredo. Este ano lançamos um catálogo comemorativo do centenário da primeira obra conhecida de Volpi, contendo o estágio atual da catalogação: aproximadamente três mil obras registradas.
Muitos pensam que catalogo raisonné seja apenas um compêndio de obras reconhecidas por autênticas. Mas não é isso. Para poder ostentar o título de raisonné, um catálogo deve primeiro levantar e compilar toda a fortuna crítica e documental referentes ao artista (livros; catálogos de exposições, individuais e coletivas; textos críticos, matérias em jornais, revistas, até mesmo cartas, etc.). Todo esse material é cruzado com as pinturas, sendo que cada obra passa a ter um verbete museológico contendo, por exemplo, cada um dos livros em que está reproduzida, onde e quando esteve exposta, quais outras obras são correlacionadas e por aí vai... No catálogo de Volpi, na parte documental, já são mais de 800 fontes de pesquisa utilizadas na elaboração dos verbetes. Tudo isso gera muita pesquisa, muito trabalho.
Arte Conceituando: Hoje os artistas contam com uma série de recursos: mercado, galerias, escolas, representações, editais, editoras, divulgações digitais, entre outros. Basicamente, houve uma profissionalização e uma melhor estruturação do mercado artístico no Brasil nos últimos 30 anos. Para fazermos uma comparação, Volpi, sabemos, tinha uma conduta quase franciscana: uma proximidade muito grande com o ofício, hábitos simples, etc. Como podemos relacionar esses dois momentos distintos da cena artística brasileira? Quais os ganhos e quais as perdas desse processo de profissionalização?
Pedro Mastruobono: Não adotaria Volpi como parâmetro, em função dos seguintes aspectos: era totalmente desinteressado pelo mercado de arte. Não acompanhava os preços que seus quadros alcançavam em galerias ou leilões. Era mantido e frequentado por um grupo seleto de amigos colecionadores que lhe compravam toda a produção. Na minha vida, nunca vi outro caso como o dele, pois havia fila constante para comprar quadros que sequer haviam sido pintados. Quando Volpi montava o chassi de um novo quadro, muito antes de aplicar o chamado preparo a base de carbonato de cálcio, escrevia no verso na tela o nome do colecionador que ocupava o primeiro lugar nessa fila. Por exemplo, com carvão escrevia “Mastrobuono” e todos ali já sabiam que aquele quadro tinha dono, apesar de ainda não ter sido pintado nada nele. Por muitas vezes, Volpi não reajustava os preços que praticava em seu ateliê, criando assim um “gap” bem grande entre o valor de uma obra adquirida diretamente daquelas encontradas em galerias. Volpi não tinha representantes comerciais ou galeristas. Não doava quadros para museus. Não falava sobre valorização. Aliás, Volpi não falava dele próprio. Então pergunto: alguém aí conhece algum outro artista que não seja vaidoso? Que não fale quase o tempo todo de si mesmo ou de sua obra? Por isso, acredito que Volpi não seja parâmetro.
Não acredito que a profissionalização dos últimos 30 anos venha a gerar prejuízos. Ao contrário. A população cresce. O grau de complexidade de nossa economia também cresce. O número de interessados, ávidos por informações consistentes acompanha tudo isso. Onde, então, acredito que haja uma perda real, no período mencionado? Para mim, na degradação da crítica especializada. Antigamente, os grandes jornais e revistas mantinham críticos de arte em seus quadros permanentes. As colunas eram isentas e diziam a verdade, fosse para o bem ou para o mal. Hoje, já não existe nada disso. Só existem criticas pagas, que constam de catálogos pagos, geralmente para acompanhar a abertura de uma exposição. O quanto de verdade existe nisso? Quando se é pago para falar bem de alguém, como manter a distância necessária? O resultado disso é a perda da critica como bússola, como norteadora, formadora de opinião. Galeristas, vernissages, lobbies, isso sempre existiu. Um pouco mais, um pouco menos. Porém, havia terceiros isentos. Hoje, isenção não existe mais.
Arte Conceituando: Você tem contato com as novas gerações de artistas?
Pedro Mastruobono: Sim, tenho um contrato muito próximo, por exemplo, com o pintor Gonçalo Ivo. Posso dizer que acompanho de perto toda a sua produção artística, já há muitos anos. Quando não consigo ir até Teresópolis, onde estão alguns de seus ateliês, Gonçalo me envia imagens por e-mail, etc. Ao longo dos anos, fui comprando e hoje convivo com várias obras dele. Sou também amigo do Paulo Pasta, cuja obra artística entendo por importantíssima. Há poucos dias, tive contato com a produção de André Ricardo, também pintor, que recentemente mereceu uma exposição na Galeria Pilar. Fiquei muito impressionado. Algumas de suas telas são difíceis de esquecer e não saíram da minha cabeça.
Arte Conceituando: Quais são os desafios para os direitos autorais diante da realidade da arte contemporânea: momento em que tudo é compartilhado, em que existem até mesmo trabalhos e artistas que questionam a questão da autoria?
Pedro Mastruobono: A legislação de direitos autorais no Brasil é obsoleta. Já não nos serve mais. Contudo, não é muito inteligente sair por ai copiando modelos estrangeiros, sem refletir e conhecer primeiro onde gostaríamos de chegar. Existem diversos modelos, completamente diferentes, espalhados pelo mundo. Cada qual com suas próprias características, adaptados aos ordenamentos jurídicos locais. Aqui no Brasil, é exatamente como diz o ditado, o pessoal não sabe se casa uma filha ou se compra uma bicicleta. Por exemplo, só agora está na moda discutir o chamado Direito de Sequencia (droit de suite), algo que já existe no mundo desde o século XIX. Tal direito surgiu quando uma pintura de Millet, titulada de “Angelus”, foi leiloada e arrematada por uma quantia bastante alta para a época, enquanto a família daquele artista estava na penúria.
A utilização moderna deste instituto é servir de convite para a formalidade, posto que a atividade de artista plástico, no mais das vezes, transcorre na mais absoluta informalidade. O preço de matérias primas, como tintas e telas, é muitas vezes ridículo quando comparado ao valor das obras prontas. Assim, se o artista passar a ter um simples livro caixa, passar a emitir algumas notas-fiscais ou dar recibos, terá, em compensação, a possibilidade de cobrar um pequeno percentual na revenda de suas obras. Na prática, trata-se de uma contrapartida ao seu ingresso na formalidade, já que passa a ter direito a uma espécie de pequeno pecúlio. Só isso. O direito de sequência é algo que olha para o para-brisas e não para o retrovisor. Foi pensado para artistas vivos e não para artistas mortos.
Ocorre que no Brasil, como de praxe, ouve-se o galo cantar, mas não se sabe onde... Por aqui, conhecer a origem e função de um determinado instrumento legal não gera qualquer interesse. Lobbies correm soltos e herdeiros de artistas plásticos já falecidos, tentam fazer valer o direito de sequencia a todo custo. Chega-se ao cúmulo de querer cobrar um percentual fixo sobre toda e qualquer venda de obra de arte, mesmo que vendida com prejuízo. Não obstante, a adoção de tal modelo, aqui no Brasil, seria ilegal. Aliás, inconstitucional. Direitos autorais contemplam o ato da criação. Resguardam certos direitos ao seu criador. Só isso. Porém, por aqui, existe um grupeto de pessoas que decidiu viver às custas dos chamados direitos autorais, uma turma adepta à “profissão herdeiro”. Como sempre, enquanto sociedade, não sabemos quem somos, menos ainda onde queremos chegar. Como, então, saber qual modelo adotar? Não há lucidez.
Arte Conceituando: Como você vê o momento cultural do Brasil atualmente?
Pedro Mastruobono: Vejo a questão como grave e profunda. Sou cético, mas não deixo de lutar. Talvez seja melhor tentar dizer aquilo que penso através de uma comparação. As crianças são, muitas vezes, egocêntricas e egoístas. Elas não têm muita noção do que seja certo ou errado, agindo por impulso e baseadas naquilo que lhes interessa. As culturas orientais são milenares. A Europa também é muito antiga, com séculos e séculos de sedimentação cultural. Já a nossa história, enquanto nação, tem pouco mais de 500 anos apenas. Como povo, somos ainda pouco maduros. Não incorporamos conceitos elementares como certo e errado, nos pautando por aquilo que nos seja propício ou adverso num determinado momento.
Estamos, sem norte, em uma sociedade externamente individualista, na qual se um indivíduo está bem, então, para ele tudo está bem... Veja, é apenas por meio da cultura que nos reconhecemos por iguais. Queira-se ou não, é através das manifestações culturais comuns que nos sentimos integrados, parte de algo mais abrangente. Tal qual um indígena se reconhece como integrante de sua tribo, através de suas danças, de sua pintura, de seu modo de professar sua fé. Assim também funciona conosco, ou seja, através de nossas manifestações culturais, deveríamos e conseguiríamos nos sentir um pouco mais brasileiros. Não obstante, não valorizamos nossa cultura, não respeitamos nossos monumentos, não honramos nossos antepassados, não cultivamos nossa memória... Razão pela qual não nos reconhecemos por iguais, assim não temos solidariedade porque não temos identidade .
Muito pouca gente entende porque faço parte de várias comissões da OAB voltadas ao direito ambiental. Na verdade, a cultura é um bem juridicamente tutelado, protegido por nossa Constituição, justamente por ser considerado um fator determinante da identidade de um povo. É considerada um meio ambiente próprio, tão importante quanto os demais, denominado Meio Ambiente Cultural. Ocorre que minha atuação é justamente na proteção deste meio ambiente específico. Uma de nossas batalhas mais recentes é pela reabertura do Teatro Hilton, cujo prédio hoje está alugado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Note-se que estamos tratando com desembargadores, por certo pessoas educadas. Contudo, como estão em uma posição cômoda, realizando ali naquele espaço suas convenções e seminários – como o Conselho Nacional de Justiça, por exemplo – por que deixariam sua zona de conforto? Apenas porque o povo tem poucos teatros? Apenas porque aquele teatro foi inteiramente reformado com dinheiro público e está em excelentes condições para retornar à fruição cultural da cidade? Solidariedade?
No Brasil, temos pouco ou quase nenhum acesso à cultura. Não temos fruição cultural. Ergo, não temos identidade consolidada. Não nos sentimos iguais. Somos bairristas, quando não somos preconceituosos. Nos achamos diferentes de outros brasileiros. E, por consequência, não temos solidariedade. Cada qual com a sua conveniência. Cada um por si... Triste. Não concorda?
FONTE
http://arteconceituando.typepad.com/my-blog/2015/11/pedro-mastrobuono.html
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