O primeiro livro sobre o Brasil
Em Frankfort — sobre-o-Meno apareceu em 1556 um livro de chamar atenção. As terras da América, recém-emergidas do limbo, tinham o dom de espertar nos europeus funda curiosidade e aquele “vient-de-paraitre” versava sobre as aventuras de um náufrago alemão que dera à costa no Brasil, estivera longos meses cativo dos tupinambás e conseguira por fim fugir-lhes à sanha canibalesca. Assunto palpitante, pois, como se diz em jornalística moderna, e impressão pública muito irmã da que nos deram há pouco tempo as ressurreições faraônicas de Lord Carnavon.
Hans Staden havia apalpado, cheirado, provado a misteriosa terra dos ameríndios, vermelhos homens sem tanga, amicíssimos de trincar a carne dos seus semelhantes como o fazemos ainda hoje ao nosso irmão porco, ao nosso paciente companheiro de trabalho o boi. Seu livro suava realismo; tudo nele, coisa vista e vivida, laivada do inimitável sabor da impressão direta.
Hans seria de poucas letras. Dai o fazer estilizar o livro por um notável da época, o doutor Zychman, médico de Marpurgo, o qual o narigou de um prefácio que é um modelo de literatura encruada.
Em matéria de graças literárias a Alemanha do século XV vagia. Plena fervura da Reforma, o debate religioso em latim sufoca o renascimento esboçado pelo humanismo. Há Erasmo, cujo ovo, no dizer do tempo, Martinho Lutero chocara; essa figura primaz, entretanto, não se atreveu a escrever o “Elogio” no alemão bárbaro do povo. E fora Erasmo os nomes da época são menos nomes que pequenos marcos cronológicos do estado fetal de uma literatura cujas formosas qualidades, mais tarde apuradas ao requinte em Goethe, mal se denunciavam. O livro de Staden, apesar de revisto por um mestre, dá bem a medida e o tom da “rudis indigestaque mole”. Tal é, porém, a força da obra vivida que inda assim vale por uma das coisas mais curiosas e empolgantes que já se escreveram.
Para nós seu valor requinta-se não só por ser o primeiro aparecido sobre nossa terra, como o que melhor nos mostra a arte com que os Vateis tupinambás, nossos avós em linha aborígine, abatiam, esfolavam, arrolhavam, assavam e degustavam entre goles de Cauim White Label os retacos e maciços portugueses, nossos avós em linha européia.
A carne lusa era positivamente um acepipe de lamber os beiços. Provam-no o caso da velha índia catequizada por Anchieta, a manifestar antes de morrer seu último desejo: esbrugar entre os tocos dos dentes uma munheca de criança moqueada; e a abalisadíssima opinião de Cunhambebe, que adiante mencionaremos. Pena é que a “sensiblerie” moderna (medo às baratas) não permita que a par da ressurreição do estilo colonial, ardorosamente preconizado por José Mariano, não se restaure a praxe gastronômica dos nossos maiores — no caso de não haver perdido suas qualidades de paladar o petisco em questão.
Staden viu-se possuído da febre aventureira, a gripe do século dos descobrimentos. Seduzido pelas lendas em giro na boca do povo, relativas aos maravilhosos países das Índias, deixou muito moço a casa paterna, em Homberg, e se foi para Lisboa, entreposto marítimo no apogeu, donde o largar de navios para as terras novas era constante.
Lá engajou-se de artilheiro a bordo da frota que encontrou a sair, realizando assim, em 1548, sua primeira viagem até Pernambuco, ida e volta. Gostou. Passou à Espanha e em Cadiz engajou-se de novo, agora em nau castelhana, tomado de curiosidade pelo Rio da Prata.
Desta feita os fados não lhe correram de feição: naufragou nos costas de S. Vicente, após horrível temporal que ele descreve de modo impressionante. Em terra caminhou ao acaso e foi dar com os ossos em Itanhaém, incipiente núcleo lusitano, cujos moradores o receberam de braços abertos.
Itanhaém e S. Vicente estavam em zona de índios tupiniquins, amigos e aliados dos portugueses; milhas adiante começava a zona dos tupinambás, nação inimiga e antropófaga. Vivia-se em guerra aberta e as constantes incursões dos tupinambás tiravam o sono aos portugueses. Dai a idéia de erigir-se um fortim na Bertioga, à entrada do canal por onde as canoas inimigas costumavam descer para o ataque.
Construiu-se o fortim (ainda hoje lá se vê, muito bem conservado, o forte com seteiras que o substituiu), mas como não houvesse artilheiro à mão ficou algum tempo ao léu, como inútil espantalho.
Foi, pois, com grande alegria que os vicentinas viram cair das asas de uma tempestade aquele artilheiro providencial.
Contrataram-no para tomar conta do forte, por quatro meses, enquanto não vinha do reino o oficial pedido. Ia a findar o prazo quando chegou o coronel Tomé de Souza; instruído dos serviços de Hans, louvou-lh’os e induziu-o a reformar o contrato por mais dois anos, findos os quais o recambiaria à Europa com rendosa carta de recomendação a el-rei.
A gula dos tupinambás atrapalhou o conchavo. Certo dia em que Hans, à espera de hóspedes, saíra em caça de jacus para o almoço, aconteceu estar nas florestas circunvizinhas um bando de tupinambás, de tocaia a bípedes implumes. Agarraram-no de surpresa, amassaram-no a pancada, impuseram-lhe incontinênti a indumentária da terra, nudez absoluta e, bem amarrado com fortes muçuranas, conduziram-no para o fundo de uma canoa. E assim, incomodamente, de papo acima, foi o dolicocéfalo louro transportado à taba de Ubatuba, na qual residiam os dois índios que primeiro lhe puseram as unhas: Alkindar-miri e Nhaepepô-açu, panela pequena e panela grande. Eram seus donos por direito de guerra. Quanto ao destino que Hans teria, estava esclarecido: panela.
A entrada de Hans na taba não merece com propriedade o qualificativo de triunfal, que lhe daria quem de longe se iludisse com o delírio de aplausos do mulherio. Foi antes tragicamente humorística, pois o forçaram a entrar gritando em língua da terra:
— Eis a vossa comida que vem chegando!
Em certos freges do Rio há o menu cantado. Naquele bom tempo cantava o prato...
As mulheres receberam o aviso com grande alarida, como se diz à acadêmica. Tomaram-no das mãos dos guerreiros e se foram com ele por diante aos safanões e bofetadas, dando perfeita imagem de um cardume nu de sufragistas inglesas rebuçadas de chocolate. Lambiam os beiços (hoje mimosos lábios de carmim Doré em suas netas) e escolhiam pedaços com a máxima desenvoltura de gula: O braço é meu — Para mim o coração — Quero esta nádega...
Introduzido que foi na taba o petisco em pé, os guerreiros se foram guardar as armas e ingerir cauim, ficando Hans entregue às suaves carícias do belo sexo. Puseram-no em uma rede, rodearam-no e, como gatas em círculo centrado pelo camondongo, por largo tempo judiaram com ele, justificando-se:
— “Che anama pipike aé” — vamos nos vingar de ti do mal que os teus nos fizeram.
Hans suou a coleção inteira dos suores frios e tratou de encomendar a alma a Deus. Salvá-la, já que do corpo não salvaria nem um osso. Estava nisso quando Alkindar e Nhaepepô vieram ter à cabana a fim de participar-lhe que o haviam traspassado, a título gratuito, a um tio, Ipirú-guaçu, homem vaidoso que ardia por encompridar o nome.
Davam-se os índios ao luxo de periódicas ampliações onomásticas, operação que exigia a captura e o devoramento de um inimigo. Digerida a carne, ficava o nome da vítima aposto como sobrenome ao nome do algoz.
Dada que foi a agradável nova, os ex-donos de Hans o deixaram outra vez entregues às Evas.
— “Poracé!” “Poracé!” ganiram elas, e levaram-no para o terreiro, puxado pelas cordas maniatadoras.
Hans desconhecia essa palavra e pensou lá com a sua barba a fazer vezes de botões que seria o fim. Resignou-se ao trespasse, revirou os olhos para o céu; depois circunvagou-os pelo terreiro, a ver se via a iverapema, pau de matar todo enfeitado, hoje, por evolução, cadeira elétrica nos Estados Unidos.
Não viu iverapema nenhuma. Viu aproximar-se madame Ipirú-guaçu com uma gilete apavorante: enorme lasca de cristal embutida em cabo recurvo. Seria que, antecipando a civilização dos seus netos sulinos, aquela tribo já substituira a morte a tacape pela degola? Nada disso. Vinham apenas fazer-lhe a toalete. Depilá-lo! A fígara pôs-lhe abaixo as sobrancelhas, as pestanas e atacou a barba.
Aqui a vaidade masculina do cliente reagiu. Hans relutou, esperneou, e pediu que o matassem com barba e tudo.
Riram-se as mulheres, declarando que não iam matá-lo tão cedo. Primeiro engordá-lo...
Salvou-se nesse dia a barba de Hans, única peça de vestuário que lhe restava sobre o corpo. Por pouco tempo, todavia. Logo depois apareceu na taba um presente de francês: tesoura. Os filhos de França já preparavam o país para futuro escoamento da sua indústria da toalete. Nada havia na taba que cortar, nem folhas de parra. Como, porém, fosse indispensável ajuizar da boa marca da tesoura, lembraram-se de fazer experiência na barba de Hans.
Desde esse dia a conformidade do prisioneiro com o “dernier cri” de Ubatuba foi perfeita: nu sem pêlos.
A repentina adoção da moda tupinambá por parte de um europeu de terra fria, afeito a pesadas roupas de lã, não podia correr sem conseqüências nevrálgicas.
E não correu. Veio agravar a indizível aflição do aflito a mais formidanda dor de dentes que o século XV registra.
Hans chorou por uma aspirina. O remédio, entretanto, era curti-la até que Tupã desse o basta. E Hans entrou a curtir a dor cruel, rejeitando sistematicamente todos os alimentos que lhe traziam.
Tal jejum não fez conta aos índios; viria emagrecer a presa na mais imprópria das ocasiões.
Apareceu-lhe, então, um índio truculento, de formidável tenaz de guatambu em punho. Era o dentista da tribo. Hans fremiu de horror e fazendo cara alegre declarou que a dor passara subitamente. Mesmo assim o bugre insistiu em arrancar-lhe os dentes, talvez com a generosa intenção de prevenir futuras recaídas. Hans lutou pelos dentes como lutara pela barba — e venceu. O dentista guardou o boticão, depois de adverti-lo de que a teima em não comer era péssima política, pois induziria Ipirú a matá-lo quanto antes. Condição de vida: engordar — e o pobre Hans, embora estalando nas crispacões da sua nevralgia histórica, entrou a comer como um frade.
Residia na taba de Ariariba o grande chefe Cunhambebe, terror de tupiniquins e peros (os índios chamavam assim aos portugueses). Além de guerreiro astuto, hábil em dirigir expedições bem sucedidas, Cunhambebe apreciava singularmente a carne lusa. “Gourmand” famoso, talvez “gourmet” de requintes, é pena que os nossos restaurantes não lhe lembrem o lindo nome em um bife. Merece positivamente essa homenagem, merece-a talvez mais que o Ararigboia, que tem herma em Niterói.
Cunhambebe quis “de visu” ajuizar daquela rica “entrée” loura com que iam regalar-se os ubatubanos, e mandou que a trouxessem à sua presença.
Hans é trazido. Encontra o pantagruélico morubixaba a beber cauim numa roda de companheiros. Reconhece-o logo pelo aspecto e pela insígnia: colar de conchas brancas enrolado seis braças ao pescoço.
Conversam. Hans aproveita o lance para protestar pela milésima vez que não era pero, e sim ótimo francês. Sabia que se pudesse impingir aos selvagens essa dupla mentira estaria salvo. Argumentou, alegou o louro dos cabelos e o azul dos olhos.
O morubixaba sorriu diabolicamente e disse:
— Já comi cinco portugueses e todos mentiram.
O aborígene não acreditava na palavra do branco, de tantas petas vinha sendo vítima desde o fatal 1500. Além disso nunca houve pero que diante da iverapema não alegasse francesia. O cético morubixaba, porém, só se rendia à opinião do seu paladar apuradíssimo. Depois, de bem assado o prisioneiro, ao trincar-lhe o pernil é que decidia entre estalos de língua:
— Francês nada. É português dos legítimos.
O alemão consternado viu que teria de passar por essa prova, a única que o não interessava...
Duas vezes esteve Hans com esse chefe. Da segunda encontrou-o sentado junto a enorme cesta de carne humana comendo gulosamente uma perna. Hans exprobrou-lhe a gula, dizendo que nem os animais inferiores comiam seus semelhantes.
Cunhambebe podia, com base em autoridades antropológicas e ainda mais na futura ação dos europeus relativa aos selvagens da América e África, alegar. que o branco era dissemelhante.
Não o fez. Contentou-se com responder tupinambamente:
— “Jauchara iche”! — Sou um tigre! Está gostoso!... e esfregou na cara do alemão aquela “delicatessen”.
A habilidade, os prodígios de astúcia que Hans Staden empregou a fim de provar que nunca fora pero, e ainda para convencer os índios de que o seu Deus o protegia e era mais poderoso que os maracás de cabaça, deram resultado. Os selvagens foram-lhe protelando o sacrifício e acabaram convictos de que, de fato, não era português. Orçou por oito meses o — é não é — e veio daí sua salvação. Durante esse tempo residiu em várias tabas, trabalhou com os índios, acompanhou-os em expedições guerreiras e prestou-lhes uma assistência médica talvez melhor que a dos pajés.
Sempre que adoecia algum e era procurado, apontava logo a causa da doença: uso de carne humana. Queria assim salvar a sua, criando a desconfiança em relação à petisqueira.
Certa vez foi chamado à cabana de um morubixaba queixoso de peso no estômago. Hans apalpou-o e disse logo:
— É o raio da carne humana. Aposto que você a comeu! É um veneno...
O doente deu balanço nos seus menus e respondeu:
— Comi há meses um português inteiro e noto que desde essa ocasião é que sinto o tal peso, a tal bola no estômago.
— Pois é isso! Mais indigesto, nem pepino cru.
O doente concordou e prometeu abster-se.
Este fato prova que a digestibilidade dos nossos avós não era uniforme. Talvez variasse com a província natal do acepipe, mais na Beira, menos no Minho. A não ser que prove apenas diferença de potencialidade entre estômagos. A moela de Cunhambebe suportava cinco e pedia mais. O outro morubixaba entupia com um.
Já as índias nunca se queixavam de encruamentos estomacais. Cabia-lhes as partes internas, mais tenras e de mais fácil digestão, fosse qual fosse a nacionalidade da rês. Tinham o hábito de ferver a barrigada em grandes vasilhas até que tudo se desfizesse em caldo grosso e muito apreciado, ao qual davam o nome de mingau. Esta “purée” destinava-se às crianças e convalescentes, nunca fazendo mal a ninguém, em que pese à suspeitíssima propaganda de Staden. No preparo deste mingau há um detalhe que não pode ser contado aqui. O batoque. O batoque preventivo... O batoque que impedia que algo se perdesse...
A culinária francesa, ao inventar a “bécassine” assada com as tripas cheias, ao natural, não inventou coisa nenhuma.
Ao cabo de oito meses de cativeiro, depois de mil incidentes e várias decepções mortais, conseguiu Staden embarcar no “Bel’Eté”, navio francês ancorado em Iteron (Niterói). Foi levado a bordo pelos índios de Itaquaquecetuba, em cuja taba passara a residir e de cujos índios se fizera amigo. A despedida foi cordialíssima. Na hora do abraço derradeiro Hans prometeu voltar com um navio carregado de presentes, facas, machados, espelhos, vindo passar o resto dos seus dias no amável convívio de Abati-poçanga, chefe de Itaquaquecetuba.
Bom europeu que era, mentiu mais uma vez. Não voltou coisa nenhuma. A posteridade, entretanto, o absolve da feia falta por amor ao presente que ele lhe fez das suas memórias — precioso espelho da nossa ascendência, que nós, menos por pudor que desleixo, só trezentos e tantos anos depois de dado a público em Frankfort vimos a conhecer em tradução recém-publicada.
Primeira vez em 6 de agosto de 2009
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